Análise de “Janela da Alma”
Janela da Alma
Janela da Alma é um documentário dos realizadores brasileiros João Jardim e Walter Carvalho e marcou a estréia do mesmo na direção cinematográfica. Jardim dirigiu comerciais de alguns dos principais anunciantes do Brasil e fez minissérie para a televisão. Walter, o cineasta de Central do Brasil, vencedor do Urso de Ouro na categoria de melhor filme, é também fotógrafo. Assina a direção de fotografia de vários filmes brasileiros, dentre eles Carandiru, Abril Despedaçado e Central do Brasil.
Janela da Alma foi bastante premiado em festivais no Brasil. Ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, o prêmio de Melhor Documentário, no Festival do Rio 2001 e também o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris.
Os realizadores optaram por fazer um documentário relacionado ao tema da visão. Para tal, foram feitas 50 entrevistas, das quais apenas 19 foram selecionadas para a edição. Dentre os entrevistados escolhidos estão a cineasta francesa Agnès Varda, Arnaldo Godoy, vereador de Belo Horizonte, os poertas Antonio Cícero e Manoel de Barros, o filósofo e fotógrafo esloveno Evgen Bavcar, o músico Hermeto Pascoal, o escritor português José Saramago, Marjut Rimminen, cineasta finlandesa de animação, Oliver Sacks, neurologista e escritor inglês, Paulo Cezar Lopes, professor de Literatura e Wim Wenders, cineasta alemão.
O título do filme, baseado na citação de Leonardo Da Vinci “O olho é a janela da alma, o espelho do mundo”, é o ponto de partida para a maioria dos depoimentos. O poeta Antonio Cícero vai longe na reflexão sobre a janela da alma e problematiza a questão, dizendo que o olhar na janela já é um olhar dentro de outra janela, então a questão torna-se cíclica e infinita, nunca chegando, de fato, na própria alma.
O olhar na janela é outro olho na janela e outro olho na janela até o infinito talvez nunca seja na verdade a própria alma. (Antonio Cícero)
As curtas seqüências de imagens e sons que intercalam as entrevistas – cidades, campos e elementos da natureza – desconstroem um pouco o sentido discursivo, quebram a previsibilidade dos depoimentos e impõe um desconcerto reflexivo.Seqüências acompanhadas por sons – vozes, melodias, ruídos – vão adicionando outras imagens às palavras. Os sons não esgotam os vazios, a melodia cria pausas. Os sons e as palavras por vezes não se traduzem, não dialogam reciprocamente. A correspondência entre som e imagem não é decifrada apenas pela visão, mas submete o espectador à experiência de ver e enxergar por outros sentidos, a vivenciar a sinestesia mais próxima da experiência dos deficientes visuais. As imagens através de janelas em movimento compõem mais da metade das sequências que entremeiam os depoimentos.
A edição de Janela da Alma parece, dessa maneira, estar descosturada, com partes de depoimentos soltos, entremeados por imagens que, de acordo com Wenders, oferecem ao espectador espaço para reflexão, lacunas para a imaginação, um respiro necessário.
Queria ver os filmes nas entrelinhas, assim como fazia com os livros quando era criança. Não há espaço entre as imagens, não há espaço para se projetar, introduzir neles os próprios sonhos. (Wim Wenders)
As interfaces verbais e visuais, ou seja, a interação dos depoimentos com as imagens nem sempre são redundantes. Os depoimentos do filme seguem rumos variados, certas vezes conectam as idéias de depoimentos seguidos, outras divergem nos relatos, acabando por nos mostrar uma narrativa descontínua, onde não há uma sequência/ordem lógica nos relatos.
Certas passagens dos depoimentos parecem mesmo estar mais enquadradas do que outras, mais focadas no tema; outras se desviam e tomam rumos inesperados. Não há um história com início, meio e fim para se contar com os depoimentos, apenas reflexões intercaladas de questões relacionadas à capacidade visual dos deficientes e dos visuais normais. Segue um pouco a linha de pensamento de Wenders ao dizer que coloca os óculos para poder enquadrar melhor a cena.
Acho que você fica mais consciente do enquadramento. Quanto tinha trinta anos, tentei usar Ientes de contato. Mas mesmo quando as usava, procurava meus ócuIos, porque apesar de enxergar bem sem os ócuIos sentia faIta do enquadramento. Acho que a visão é mais seIetiva. Temos mais consciência do que vemos de fato. Sem os ócuIos, tenho a impressão de ver demais. E não quero ver tanto, quero ver de forma mais contida. (Wim Wenders)
Essas imagens de paisagens naturais e urbanas intercaladas com as entrevistas, algumas são desfocadas, quase que imagens abstratas, quase que simulando diferentes tipos de deficiência visual, outras são simples, proporcinoando um momento ideal para reflexão das coisas mundanas do cotidiano, que quase não temos tempo para pensar sobre, pois estamos cegos, metaforicamente.
No entanto, a visão é muito mais do que o uso dos olhos físicos com os quais vemos o mundo à nossa volta. É possível, então, admitir que mesmo com os olhos fechados podemos obter um maior entendimento do mundo que nos rodeia já que, a maior parte das vezes, nos limitamos a lançar um olhar distraído sobre as coisas, esquecendo-nos de as observar, de reparar nelas.
Acho que também é isso que tento abordar nesse fiIme. A verdadeira Iesão foi a perda de um oIho, a deformidade que transformava meu rosto em uma espécie de ameixa enrugada, o fato de ser feia e vesga aIgo em que ninguém nem reparou.
Trágico, não? (Marjut Rimminen)
Os relatos no filme, no entanto, não se restringem apenas à visão física, os temas explorados e desenvolvidos pelos entrevistados vão além de uma análise fria e racional do sentido da visão. A emoção, os sentimentos e os outros sentidos são citados na maioria dos depoimentos como sendo de enorme importância e relevância para uma visão completa do mundo, independente do fato de se ter ou não uma visão física normal.
FeIizmente, a maioria de nós é capaz de ver com os ouvidos, de ouvir e ver com o cérebro, com o estômago e com a aIma. Creio que vemos em parte com os oIhos, mas não excIusivamente. (Wim Wenders)
O filme começa com a imagem de uma fogueira ao som de uma música instrumental calma e como pano de fundo um barulho de água. Pode parecer antagônico, mas é uma metáfora existente para a sinestesia da visão. Pois só somos capazes de compreender e enxergar o mundo a nossa volta se apurarmos também os demais sentidos, como olfato, tato e audição. Pois, de acordo com o que o filme nos propõe refletir, a visão só é completa quando é percebida por outros sentidos.
Qualquer grau de deficiência visual promove um aprofundamento no usufruto dos outros sentidos, que se tornam muito mais aguçados. Quando fechamos os olhos percebemos melhor os outros sentidos, privamos um sentido para focar o outro. Imagine uma situação de ver um depoimento em inglês, sendo que o seu grau de conhecimento na língua não é avançado. Fechar os olhos e não ver o entrevistado ajuda muito a compreensão e o entendimento do que está sendo dito. Fechamos um sentido para abrir o outro. A tela da televisão, o ambiente à nossa volta e outros sons ambientes nos atrapalham e nos desconcentram daquilo que queremos mesmo ouvir/entender/ver. Dessa maneira, fechando os olhos para as distrações mundanas estamos nos concentrando naquilo que queremos realmente enxergar e perceber.
Nunca senti falta da visão. A visão interior é a que a gente desenvolve mais. Onde o ser humano enxerga mais, é na testa. A visão dos olhos atrapalha a visão interior. Tem tanta coisa ruim que atrapalha a visão certa. (Hermeto Paschoal)
Nunca me esqueci da visão que tive da coroa do Camarote Real, no Teatro em Lisboa. De longe, uma maravilha. Quando olhei por debaixo, repleta de sujeira, teias de aranha… e logo aprendi: Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta. (José Saramago)
E para um cineasta, estar próximo quer dizer estar reaImente próximo. Então, eu fiImava o que todos viam. Mas a maneira como fiImei seus braços, suas mãos e seu rosto de perto, de muito perto, chegando à textura desse homem a peIe pode-se ver cada peIo como se entrássemos dentro de sua peIe…de muito perto. Acho que só tive esta visão devido ao medo de perdê-Io. E o perdi. EIe morreu, seis meses depois da fiImagem. Acho que ninguém teria sido capaz de reaIizar esse fiIme exatamente da maneira como eu o fiz. Como já disse, a visão é aIterada por sentimento por sentimentos fortes. (Agnès Varda)
Em depoimentos de cegos, nota-se que a maioria deles não sonham com imagens, e sim com sons e com cheiros, ou seja, os outros sentidos, não atrelados à visão, são mais desenvolvidos, visto que ao terem um sentido a menos, digamos assim, faz com que sejam mais concentrados nos outros sentidos, tornando-os mais apurados e aguçados que em pessoas com uma visão normal.
Eu sonho com imagens. Onde vou pergunto a cor, a forma. (Arnaldo Godoy)
Assim, a cegueira vem nos mostrar o quão delicados somos, quão belo pode ser o mundo quando nos prestamos a abrir os sentidos a ele. O cego desenvolve a intuição e, principalmente, o coração.
A vista não pára. Que vista rica! (Hermeto Paschoal)
Oliver, em seus relatos, também desenvolve a idéia de que a visão não se restringe a olhar o que está de fora, mas acredita também que somos capazes de imaginar coisas a partir, nao só do que vemos, mas também do que sentimos emocionalmente e através de outros sentidos.
O ato de olhar não se limita a olhar para fora, não se limita a olhar o visível, mas também o invisível, de certa foram é o que chamamos de imaginação.Se dizemos que os oIhos são a janeIa da aIma…sugerimos, de certa forma, que os oIhos são passivos e que as coisas apenas entram. Mas a aIma e a imaginação também saem. O que vemos é constantemente modificado por nosso conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções, peIa cuItura, peIas teorias científicas mais recentes…
Se aIguma vez vimos raspas de ferro sobre um ímã e quaI o comportamento de um campo magnético acredito que isso entra no imaginário, de certa maneira e posso ver o campo invisíveI do ímã. Posso vê-Io, sem o ver. Posso vê-Io com os oIhos da mente. (Oliver Sacks)Eu não acredito que o olho vê, as coisas aparecem de dentro, vêm de dentro, não entrando pelo olho, é a imaginação que transforma o mundo.(Manoel de Barros)
Janela da Alma também nos propõe uma reflexão acerca do sentido conotativo dado à visão e, consequentemente, à cegueira. Fazemos sempre uma analogia entre a visão e o entendendimento,a compreensão, a assimilação, fazemos analogia também entre a cegueira e a falta de percepção.
Somos bombardeados por tanta informação, que não sabemos para onde olhar, o que olhar. Na verdade somos induzidos a olhar para coisas quase que explicitamente impostas. Dessa forma, não conseguimos captar a essência das coisas mais simples e básicas que gostaríamos. O excesso de informação nos leva a uma espécie de cegueira intelectual. Na verdade, a cegueira pode ser considerada uma grande metáfora do homem moderno que está em crise, que não vê nem repara, nem absorve, apenas vive à deriva dos aconteceminentos. Nos cegamos para o mundo, metaforicamente, para não termos de ver coisas que nos desagradam.
Ter em excesso signfica que não tem nada. Não presta atenção, não somos tocados, a história tem que ser muito boa para nos tocar, senão não ligamos mais.
A atuaI superabundância de imagens, significa, basicamente que somos incapazes de prestar atenção. Somos incapazes de nos emocionarmos com as imagens. AtuaImente, as estórias têm que ser extraordinárias para nos comoverem. A estórias simpIes não conseguimos mais vê-Ias. (Wim Wenders)
Mas vocês não são videntes cIássicos, vocês são cegos porque, atuaImente, vivemos em um mundo que perdeu a visão. A teIevisão nos propõe imagens prontas e não sabemos mais vê-Ias, não vemos mais nada porque perdemos o oIhar interior, perdemos o distanciamento. Em outras paIavras, vivemos em uma espécie de cegueira generaIizada. (Evgen Bavcar)
Quando se fala em olho, e na visão, se quer significar a capacidade de orientação, discernimento na busca do caminho correto, perspicácia na análise dos nossos atos e clareza nas tomadas de decisão. Um exemplo que cabe a esta reflexão é a expressão“Você está cego?”, que usamos muito quando querermos dizer que a pessoa não está percebendo e compreendendo o que estamos querendo dizer.
Já na expressão “O pior cego é aquele que não quer ver” temos que mesmo quem não possue uma visão normal tem a capacidade de ver, só que através dos outros sentidos. Ela não é utilizada apenas para pessoas cegas, mas também para pessoas com a visão normal, querendo dizer que é só se esforçar e tentar se concentrar nos outros sentidos para compreender e entender o mundo.
Todos esses tipos de expressões nos mostram como a cegueira vai além de um problema no sentido da visão. Como a visão não é capaz de, por si só, fazer compreender.
Eu faço um mapa na cabeça para me guiar. Fico ligado em outros referenciais, subidas, curvas, viradas, barulhos da rua. (Arnaldo Godoy)
Com todos esse exemplos, temos em vista essa forte conotação da visão como metáfora de consciência, ou da imagem como entrave a essa consciência. A visão esconde ou a visão revela? O excesso de visão não é a cegueira?
Para vocês que enxergam, eu a toquei.
Mas para mim, que sou cego, eu a oIhei de perto. Para mim, Iinguagem e imagem estão Iigadas, isto é o verbo é cego, mas é o verbo que torna visíveI. Sendo cego, o verbo torna visíveI, cria imagens graças ao verbo, temos as imagens. AtuaImente, as imagens se criam por si mesmas deixaram de ser o resuItado do verbo, e isso é muito grave. É preciso que haja um equiIíbrio entre verbo e imagem. (Evgen Bavcar)
Concluindo, Janela da Alma é mais do que uma coletânea de depoimentos pingados, que foram reunidos sem o objetivo de construir uma história. Os relatos foram assim dispostos para nos tocar, e fazer refletir e compreender que podemos ir além do que vemos, que cego não é quem não tem a visão física normal, mas sim quem não quer enxergar por outros olhos.
Esta é minha sobrinha Verônica, a quem fotografei em um campo que vira há muito tempo, pedi a eIa que corresse e dançasse eIa usava um sininho, que eu escutava. Na verdade, fotografei o sininho, mas este não pode ser visto. Trata-se, então, de uma fotografia do invisíveI. Às vezes, percebo por mim mesmo, ou escuto e oriento a máquina em direção à voz. (Evgen Bavcar)