Lugar (im)possível

Fernando José Pereira







b #02
Jan.03




“Uma vez, num jantar, um professor de uma qualquer área das ciências, querendo manter uma conversa banal, tinha apontado alguns insectos que giravam sobre o candelabro. Dissera-lhe que era a impressão visual de uma zona ainda mais escura para lá da luz que os atraía. Apesar de correrem o risco de serem comidos, tinham de obedecer ao instinto que os levava a procurar o sítio mais escuro, o que, neste caso, era uma ilusão.”
Ian McEwan

Desde Marx que sabemos que o capitalismo possui a suprema tentação de expansão total. Com ela nos defrontamos na nossa contemporaneidade. Mas, o que interessa, antes de mais, é o aferir desta realidade que se impôs declaradamente e em termos de um sistema na condição de totalizante, no sentido de ocupação total.
A dificuldade de nomeação de uma estrutura aparentemente indízivel ou inominável advém do facto de se apresentar aos nossos olhos como um pansistema. Existe, neste caso, uma linha fronteiriça muito frágil entre o que pode ser qualificado como totalidade não representável —que lhe é devida ao facto de ser uma espécie de ente omnipresente que, como tal, inibe qualquer possibilidade de oposição externa e, assim, se transforma numa realidade totalizadora, portanto aparentemente invísivel— e a sua própria inexistência. Propõe-se uma realidade que por ultrapassada passou a ser encarada de forma anacrónica. Aquela que reconhece o sistema unicamente como centrado e como tal passível de representação orgânica: para um centro definido existiriam claras margens e limites internos. Ora sabemos que a entidade com que nos defrontamos não possui estas características, pelo contrário, perante um sistema descentrado existe, isso sim, a plena consciência de uma ausência total de margens por óbvia impotência representacional.
Refere Terry Eagleton a este propósito, no contexto da análise de uma aparente impossibilidade teórica de exploração dos elos fracos do sistema, quer dizer, as margens e falhas do próprio sistema:

“Fascinados por esas líneas de falla, podríamos incluso llegar a imaginar que no hay centro en la sociedad después del todo, pero mientras que ésta puede ser una manera conveniente de racionalizar la propia falta de poder, sólo podrá hacerse a costa de darse cuenta de que tanpoco puede haber márgenes” (Eaglton, 1998)

É com a questão central da totalidade que nos defrontamos quando tentamos analisar a inserção neste sistema. Algo que ainda hoje temos dificuldade em nomear e em conhecer, por oposição a algo que, por analogia com as concepções canónicas da religião, se ofereceria como uma “forma privilegiada de autoridade epistemológica”(Jameson, 2000) de que apenas alguns teriam conhecimento e guardariam para si próprios com a intenção de escravizar todos os demais.
A nomeação da actual fase de desenvolvimento do período histórico que vivemos, como globalizadora —tentativa de resolução do problema de rotular a nossa contemporaneidade, através do recurso a uma representação semântica passível de encontrar um significado para o percurso seguido até agora pelo capitalismo, ou seja, a nomeação provisória do seu actual estádio de desenvolvimento— enquadra-se na constatação já assimilada de que o capital tende necessariamente até a um limite de mercado global, que é também o seu último momento de crise, já que depara com a impossibilidade de expansão. A sua expansão totalizadora vincula todas as estratégias de compreensão da actualidade a uma posição endógena que é dificultada conceptualmente pela incapacidade de nomeação quantitativa deste estado de saturação do espaço.
Fredric Jameson na caracterização que realiza do espaço pós-moderno refere-se à sua feição totalizadora como característica de um novo sublime, um tecno-sublime. Ora sabemos desde Kant que o sublime se caracteriza fundamentalmente pela incapacidade de julgar e representar o incomensurável, por falta de uma adequação teórica que permita a sua concretização, ou seja, encontramo-nos de novo a referir a noção anterior de totalidade.
Se recorrermos a Godel sabemos, também, que esse mesmo sistema entra, necessariamente, em crise por falta de exterioridade. Com ela convivemos. Godel provou que "se se fixam as regras de inferência, e um qualquer número finito de axiomas, haverá asserções exactamente formuladas de que não se pode demonstrar se são verdadeiras ou falsas." (Ruelle, 1991). Ou seja, não se pode nunca provar aplicando as regras da inferência que uma asserção é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Aceitando esta propriedade como axioma defrontamo-nos com um carácter novo que nos diz que perante a aceitação desta novas propriedades permanecerão indemonstráveis. Ao teorema de Godel foi dado o nome de teorema da incompletude. O que se prova é a inexistência de soluções no interior de um único sistema por ausência de provas irrefutáveis.
Se utilizamos o teorema de Godel é com a consciência das limitações que teremos de impor a uma apropriação que não pretendemos abusiva. Não é possível a sua integração em ambientes simbólicos estranhos senão como metáfora. O especialista Douglas R. Hofstadter fornece um exemplo curioso desta lucidez, mas também, de uma clareza fundamental ao seu entendimento:

“How can you figure out if you are sane? This is a strange loop indeed. Once you begin to question your own sanity, you can get trapped in a ever-tighter vortex of self-fulfilling prophecies, though the process is by no means inevitable. Everyone knows that the insane interpret the world via their own peculiarly consistent logic; hoe can you tell if your own logic is «peculiar» or not, given that you have only your own logic to judge itself? I don’t see any answer. I am just reminded of Godel’s second Theorem, wich implies that the only versions of formal number theory wich assert their own consistency are inconsistent.” (Hofstadter, 1979)

Toda a complexidade matemática que transfigura a leitura de uma aparente simplicidade —como provam a existência de estruturas fractais no interior das formas mais simples da natureza— em difícil interpretação, vem dar razão àqueles que provam a inexistência de uma solução única no interior de um sistema simbólico como forma de resolução. Vimos já da sua impossibilidade.
Apesar destas evidências teóricas confrontamo-nos, hoje, com esta espécie de inevitabilidade contemporânea, aquela que proporciona a tentativa de possibilitar o impossível, que se corporiza segundo uma ordem determinista de ocupação do espaço: aquela que é veículada por toda a parafernália de fenómenos de sedução, hoje, aperfeiçoados em níveis de execução surpreendentes.
A teoria psicanalítica designa por pontos nodais aquelas significações vazias (empty signifiers) que afirmam um lugar de atracção. Um tipo particular de significação que, pelo seu esvaziamento, se forja como uma aproximação a uma abstracção, —da mesma forma que ouro, embora sendo um valor de uso particular assume, também, a condição de representação da noção de valor em geral— aquela que tenta conter em si a ausência significativa de uma totalidade, isto é, um lugar de hegemonia.
Contudo, um lugar só poderá ser materializado através da nomeação dos seus limites e estes afirmam verdadeiramente a essência da significação vazia. Refere a este propósito Ernesto Laclau: “We can say, with Hegel, that to think of the limits of something is the same as thinking of what is beyond those limits” (Laclau, 1996)
Só existem limites perante a constituição activa de diferenças mas, por outro lado, o interior e o exterior serão, antes de mais, estruturados, eles também, por conjuntos de identidades diferenciais, daí que seja impossível estabelecer um conjunto de diferenças que constitua internalidade e externalidade. A constituição do limite só pode existir, então, segundo uma outra perspectiva: aquela que assume claramente a noção de antagonismo. Limites verdadeiros não podem ser nunca neutrais, pressupõem, sempre, a ideia de exclusão, ou seja, uma significação de total cancelamento de toda a diferença.
Encontramo-nos, assim, perante um aparente paradoxo: as condições de possibilidade para um sistema são, também, as condições da sua impossibilidade. Refere, novamente, Laclau: “But if we are talking about the limits of a signifying system, it is clear that those limits cannot be themselves signified, but have to show themselves as the interruption or breackdown of the process of signification.” (Laclau, 1996), Quer dizer, processa-se um bloqueio na expansão contínua do processo de significação. Interessa-nos, sobretudo, amplificar a ideia de sistema de significações em sistema de significação política totalizante. Esta é uma constatação deveras importante pois daí deriva toda a construção desejante.
O lugar que afirma a hegemonia exala sedução, daí a impossível neutralidade dos limites mas, também, o amplo poder de irradiação. Uma claridade tão forte que se eleva à condição de cegueira. Uma impossibilidade de visão que redimensiona a exclusão em direcção a uma potência desejante que aspira, acima de tudo, a significar os limites, uma espécie de encontro com o real —se utilizarmos o sentido Lacaniano do termo—, mas este é, obviamente, impossível.
O carregamento simbólico da realidade construída —a possível— determina todas as hipóteses combinatórias de conjugação de uma finalidade, seja em hábeis construções semânticas de um impossível mapeamento dualizado, seja em complexas redes de interdependência que ensaiem corporizar a possibilidade da impossibilidade, isto é, a utopia da visibilidade para lá da cegueira.
Perante tal estado de centralização compulsiva (baseada, contudo, na noção de diferença!) talvez seja possível metaforizar uma possibilidade, —nas palavras de Jameson, algo que agora podemos identificar como o nosso velho amigo: o pensamento utópico. Essa possibilidade de carácter desejante pode ser corporizada segundo a perspectiva da ordenação caótica —o atractor estranho— como catalisadora do que Deleuze designava por realidade diagramada, isto é, o espaço liso no seio do estriado. Este atractor nunca toma a forma de um ponto, antes corporiza-se como um conjunto de linhas enredadas entre si e no interior de uma circulo desfigurado anamorfoticamente.
Refere Slavoj Zizek:

“ El aspecto revolucionario de esta teoria queda condensado en la expresión “atractor extraño”. Es posible que un sistema se comporte de un modo regular, caótico (es decir, que nunca vuelva a un estado previo) y sea no obstante capaz de formalizarse por medio de un atractor que lo regula: un atractor que es “extraño”, es decir, que no toma la forma de un punto o de una figura simétrica, sino de serpentinas interminablemente entretejidas dentro de los contornos de una figura definida, un círculo desfigurado “anamorfoticamente”, una mariposa, etc.” (Zizek, 1991)

Na interpretação metafórica e muito pouco ortodoxa que propomos, a acção do atractor estranho introduz uma ordenação não totalitária na vivência do sistema. Uma acção que considera a lucidez mas não a limitação. A desconstrução que opera nos sistemas dualistas de ordem/desordem, instaura um terceiro grau de hipóteses de actuação, aquele que possibilita a pulsão desejante. Perante a convulsão provocada pela ideia hegemónica de totalidade o atractor estranho permite a discussão que fomenta a sua incompletude.
A peculiaridade formal explicitada pelo atractor manifesta o seu lado mais interessante na possibilidade da aparente impossibilidade —a utopia da visão depois da cegueira— através da cobertura a 360º.
A existência do ponto nodal —afinal o lugar (im)possível— impõe-se, sempre, pelo carácter sedutivo que exala. O seu fascínio determina a exclusão da visão anamórfica, o que dificulta, naturalmente, a correcta compreensão da espacialidade contemporânea. É esta deformação constitutiva que não permite o aprofundamento dos antagonismos, afinal os pontos chaves de qualquer socidade participativa e não unificada compulsivamente. Em forma de conclusão voltemos, uma vez mais, a Ernesto Laclau:

“As society changes over time this process of identification will be always precarious and reversible and, as the identification is no longer automatic, different projects or wills will try to hegemonize the empty signifiers of the absent community. The recognition of the constitutive nature of this gap and its political institutionalization is the point of modern democracy.”

NOTA: Este é um texto que resulta da preparação e apresentação de uma instalação com o mesmo título. Para uma visão parcial mas, apesar de tudo, possível dos seus aspectos mais significativos clicar aqui.

Bibliografia


McEWAN, Ian: Expiação, Gradiva, Lisboa, 2001

EAGLTON, Terry: Las ilusiones del posmodernismo, paidós, Barcelona, 1998

JAMESON, Fredric: Las semillas del tiempo, Editorial Trotta, Madrid, 2000

RUELLE, David: O acaso e o caos, Relógio d’Água, Lisboa, 1994

HOFSTADER, Douglas R.: Godel, Escher, Bach: an eternal Golden Braid, Penguin Books, London, 2000

LACLAU, Ernesto: Emancipation(s), Verso, London, 1996

ZIZEK, Slavoj: Mirando el sesgo, una introducción a Jacques Lacna a través de la cultura popular, Paidós, Buenos Aires, 2000