Wallid Raad e the Atlas Group: o enredo de uma crise

Joana Mateus*







b #20
Jun.08

 

[Este texto foi redigido por ocasião da exposição The Atlas Group (1989-2004): A Projecct by Walid Raad na Culturgest, em Lisboa, de 28 de Setembro a 30 de Dezembro de 2007.]

 

Apresentação de Hostage: The Bachar Tapes (English version)_#17 and 31 do projecto The Atlas Group de Walid Raad.

 O artista Walid Raad constrói a sua obra a partir de três momentos distintos: a performance, na qual representa o papel de historiador libanês; a exposição de trabalhos que caracteriza como documentos; o catálogo da exposição que não contém apenas, nem todos, os trabalhos expostos. Walid Raad pertence a uma fundação imaginária, The Atlas Group, cuja função é criar documentos, distinguidos por Raad em três categorias (LEPECKI, 2006: 94): Files A Authored Files, Files FD Found Files e Files AGPAtlas Group Produced Files. Files Type A são aqueles que contêm documentos que a organização produz e encontra e que atribui a indivíduos reais ou imaginários; Files Type FD são aqueles que a organização produz e encontra e atribui a indivíduos anónimos ou a organizações; e os Files Type AGP são aqueles que The Atlas Group produz e encontra e cuja autoria atribui a The Atlas Group. O documento que iremos aqui tratar pertence a File Type A, da autoria de Bachar: é um vídeo com o título Hostage: The Bachar Tapes (English version)_#17 and 31.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 Alguns frames do vídeo (estas imagens e a seguinte); a seguir, a legenda na apresentação do vídeo que acompanha a locução em árabe de Bachar:

“My name is Souheil Bachar. I am 35 years old. I was kidnapped in 1983. I was released in 1993. I am from the village of Houla in South Lebanon. Please translate what I say in Arabic in the following video segments into the official language of the country where the tapes are screening. English for the U.S. and U.K., French for France, and Arabic for the Arab world, and so on. I also ask you to dub my voice with a neutral-toned female voice. Subtitle what I am currently saying. Let the subtitles appear on a grey background, or if you prefer…use a blue background… [neste ponto a imagem muda de cinzento para azul claro] blue just like the Mediterranean.”


O vídeo, projectado na exposição da Culturgest, em Lisboa,  é o primeiro nível de aproximação a The Bachar Tapes. No catálogo há um outro contacto com o trabalho — as imagens de frames do vídeo e a entrevista ao autor das Tapes pelo artista Walid Raad. A seguir resumimos esse texto e, para facilitar a sua análise interna, dividimo-lo nas secções A, B, C, D e E.



O 1º NÍVEL DO ENREDO - A ENTREVISTA

SECÇÃO A ] Souheil Bachar, um empregado de baixo nível da Embaixada do Kuwait em Beirute (LEPECKI, 2006: 95), explica a Raad na entrevista de 2002 (RAAD, 2007: 52-67) como entrou em contacto com The Atlas Group e realizou The Bachar Tapes:

“I saw your presentation of The Atlas Group Archive in September 1999 at the Ayloul Festival in Beirut. I was very intrigued by your foundation’s mission and by the documents in your archive. I approached you after the presentation and we agreed to meet and talk. After a series of meetings between us two years ago, your foundation proposed to assist me in the production of the videotapes about my experience as a hostage. In the past two years, I have produced 53 short videotapes. (…) I have screened publicly all 53 videotapes but only in Lebanon, Syria, Iran, Iraq, Egipt, Lybia, Sudan, Palestine and Morocco. Of the 53 videotapes, I allow only 2 tapes, tapes #17 and #31 to be screened in North America and Western Europe.”



Em Hostage: The Bachar Tapes (English version) #17 and 31, um trabalho de 2001, o autor imaginário Souheil Bachar contempla várias dimensões da crise dos reféns ocidentais raptados em Beirute nos anos 80. No decurso dos anos em que Bachar esteve detido (entre 1983 e 1993) passou três meses com cinco reféns americanos: Terry Anderson, Benjamin Weir, Thomas Sutherland, Martin Jenco e David Jacobsen; todos os americanos escreveram um livro sobre a experiência de refém. Esse período coincidiu com as negociações “Arms for Hostages”, em meados dos anos 80, e terminou com a libertação de Benjamin Weir a 14 de Setembro de 1985, como resultado do primeiro embarque de armas pelos EUA via Israel para o Irão.

SECÇÃO B ] Na entrevista, Bachar não se mostra disponível a explicar porque só permite a exibição no Ocidente dos registos #17 e #31. Quanto à intenção, anunciada na legenda de apresentação do vídeo, de que seja realizada, para cada uma das Tapes, a dobragem em voz feminina na língua do país onde fosse exibida, Bachar diz que ainda espera que sejam reunidos os fundos que o permitam[1]. Entretanto, admite que na versão inglesa a voz não traduz exactamente o que é dito em Árabe, por vezes dizendo precisamente o oposto, outras vezes não se relacionando de todo com o que é dito no original, e que tal foi propositado.

SECÇÃO C ] Bachar está particularmente interessado em falar sobre o escândalo político associado à detenção dos reféns americanos, o caso Irão-Contra, e comenta largamente o assunto na entrevista. A sua posição resume-se ao seguinte:

“My reading of these documents demonstrated to me that the inquiries and report’ investigative scope was limited to particular areas and questions and as such failed to address a number of central questions about the development and implementation of US foreign policy. I am convinced that a bringing together of the facts was far from the sole or even the primary motive of these investigations. Politicized and partial, these investigations produced contested narratives that displaced interest from the historical and political dimension of the affair to a concentrated analysis of the good health of the American political system (…). While these questions became a vehicle through which faith in the good health of the system was restored they failed to account for the historical and political significance of the abduction of western man in Lebanon.”

Raad sugere que a Tape #17 demonstrará que os americanos tentaram despolitizar a sua captura, tratando os raptos em termos pessoais em vez de políticos; Bachar concorda acentuando o facto de cada refém americano iniciar o relato da sua história falando do tempo. Observa que os reféns estavam, no entanto, cientes da natureza política, e não criminosa ou pessoal, da sua detenção, uma consciência particularmente expressa na descrição das tentativas de libertação promovidas pelas mulheres dos reféns:

“Carol Weir (Benjamin Weir’s wife) has written about her meeting with then Secretary of State George Shultz. (…) She wrote of the oppressive US-supported Israeli aggressions in South Lebanon (…). His response to Carol Weir that “the Shi’ites… are pagan and primitive people”, and that “such people were crazy, they heard voices from God, they were deranged. It was impossible to talk to them”. (…) such declarations were consistent with many of the characterizations of the captors presented by the press and subsequently reaffirmed by the hostages. In other words, even as the hostages would present various political motives to explain the abductions, at the same time they drowned these political explanations in a barrage of terms that demonized and belittled the hostage takers and their motives.”

SECÇÃO D ] Para Bachar, os livros dos reféns americanos centram-se na relação deles próprios com as mulheres ou namoradas durante e após o período de detenção; analisam o cativeiro pela faculdade de permitir uma alteração da personalidade dos detidos face ao anterior sentimento de insatisfação pessoal com a vida no Ocidente:

“This theme of disrupted, strained and unrealized marriages as a motive behind the westerners’ desires to go to the Middle East sets up another crucial distinction between the west and the Midlle East. In this distinction, the west stands as the locale of failed masculine relations to heterosexual domesticity, and Lebanon figures as the place that can and did rehabilitate the westerners so that they emerged from their captivity as the good husbands they ought to be.” (…) in the captivity narratives, the threat of male-male desire seems to be essential for the rehabilitation of the westerners. (…) the westerners’ “inability to live in intimate association” with someone, proceeds to their forced homosocial intimate association with westerners and their fears of being raped by Arab guards whose sexuality is uncertain and ends with their reunification with their wives/girlfriends with whom the episode of captivity is narrated.”

SECÇÃO E ] Raad distingue a ironia nas palavras de Bachar quando diz que o cativeiro serviu para o refém ocidental confirmar a própria orientação sexual; pede-lhe que, portanto, esclareça a sua posição quanto à situação de refém: não é ela horrível e trágica?

“Yes, I agree. (…) Beaten and blindfolded, gagged and taped, harangued, threatened, tortured, isolated, abandoned, half-starved, chained, ridiculed and harassed, we suffered greatly at the hands of our captors. And some of us continue to suffer the physical and psychological effects of our detention. My interest today is in how this kind of experience can be documented and represented. I am also convinced that the Americans have failed miserably in this regard (…) of all the ways the stories of captivity could have been written, why were they written this way?”



O 2º NÍVEL DO ENREDO – DENTRO DO DOCUMENTO

O alucinatório mediático

Vemos Raad como um outro muito específico e a sua identidade determinada pela geo-política. Estabelecemos um tipo de relação com o conjunto da sua obra que não nos permite dividir o que lhe é interior do que fica no exterior: frequentemente, observamos o autor a ser a própria obra, seja pela performance com a exposição do trabalho visual, conceptual e literário, como pelos ensaios e entrevistas em nome próprio. Assim, parece-nos adequado substituir a noção de obra artística pela de enredo artístico. O conceito de enredo também explicita a vontade de comprometimento no emaranhado discurso inter-cultural.

 “As tapes #17 and #31 start rolling, we hear and read how Bachar carefully delineates very specific instructions for the tapes’ public display. Here, we no longer have the historian as organizer who has a final say in dictating the display of the document. Now, it is the document itself that voices the intentionality of its creator, outlining how it should circulate in its afterlife as image, as memory/trace, and as proof” (LEPECKI, 1996: 95).

Na SECÇÃO B referimos que Bachar coloca condições restritas para a visualização das Tapes. Ficamos ainda a saber que, na sua autoridade, Bachar impõe uma tradução falsa, operando uma segunda edição do vídeo que reaproxima e agrega o vídeo ao autor num objecto documental. A tentativa de controlar em absoluto a forma de transmissão da obra pretenderá subverter o domínio exercido pelas instâncias mediáticas nos processos de relação inter-culturais. A pretexto da exposição video cult/ures, Úrsula Frohne (1999: 14) fala de como a intensidade com que nos media se pratica o “culto de culturas” permite que entremos, sem qualquer comprometimento, em diversas esferas culturais via “remote control”; isto causa o efeito psico-cultural de uma daydream nation[2], que encontra extrema dificuldade em sentir-se ligada ao real senão através de uma prática sob algum aspecto radical. Também Hal Foster em Obscene, Abject, Traumatic (1996: 120) refere o sentimento de crise da geração X, que fala do Trauma mas é politicamente indiferente porque não acredita na possibilidade da acção ter consequências efectivas; a prática artística dos anos 90 consegue o retorno ao real, escapando à alucinação do shopping & tv, através da estratégia do abaixamento no abjecto e consequente elevação, erecção, do corpo sobre a terra. É por oposição ao fechamento provocado na alucinação mediática que Raad trabalha o enredo numa esfera pública, comprometendo, de uma maneira provocadora, a nacionalidade do espectador no acesso à obra. The Bachar Tapes  segue a problemática da vídeo-arte dos anos 90, caracterizada por Frohne:

“The observation of one’s own culture as an experience of alienation is likewise a recurring theme, one that is interpreted artistically with the camera and contextualized in the form of three-dimensional installations. The same is true of the gaze directed toward other cultures; the latter, however, also involves an awareness of the problematic nature of the historical western fixation on the constructed exoticism of cultural alterity, a relationship of mirroring that has traditionally positioned itself between appropriation and exclusion as a reaffirmation of the territory of the western self” (1999: 15).

Colonialismo e primitivismo

A problemática do colonialismo associada ao primitivo permanece fulcral em The Atlas Group. Na SECÇÃO C do texto da entrevista de Raad a Bachar este insurge-se contra o etnocentrismo dos EUA em três acusações distintas: a boa saúde do sistema americano é preservada à custa da negação de uma história para a sociedade libanesa; a despolitização das experiências dos reféns, através de uma redução do contexto do rapto ao estado do clima, associa claramente o oriente com a natureza arcaica; o Secretario de Estado George Shultz refugia-se numa descrição primitivista dos Shiitas para justificar a sua política de apoio à agressão e violência. Hal Foster (1985 in FLAM, DEUTCH, 2003: 386) considera que por detrás da descoberta moderna do primitivo está encoberta a culpa ocidental, um sentimento de remorso pela crise do outro, que nenhuma antropologia, elevação estética ou exibição redentora podem corrigir ou compensar porque estão nela implicadas. Ou seja, o primitivismo esconde o problema do colonialismo e é uma construção do Ocidente repressora da circunstância da nossa regeneração cultural estar baseada, em parte, na ruptura e queda de outras sociedades; então, a descoberta moderna do primitivo não só é o seu esquecimento como também a sua morte.

Face à crise instaurada pelo fim da História e correlacionada a expectativa de regeneração pelos novos objectos trazidos das tribos de África, dos índios da América e da Oceânia, George Bataille desenvolveu um projecto próximo do artístico. Coleccionou e analisou um conjunto de documentos da contemporaneidade a partir de uma transferência essencial: procurando o primitivo no moderno, desvendou o arcaico na sociedade Ocidental. A sua celebração do materialismo baixo vai buscar aos objectos primitivos do indígena o modo de ser. Opõe-se fundamentalmente à possibilidade de uma tectónica, tal como expressa pelo filósofo Alain Locke em 1924, na qual “African art will serve not merely the purpose of a strange new artistic ferment, but will also have its share in the construction of a new broadly comparative and scientific aesthetics” (LOCKE, 1924 in FLAM, DEUTCH, 2003: 188). Esta Nova Estética[3], é vista por Carl Einstein (1915) como uma reinterpretação dos velhos materiais (a escultura africana coleccionada como arte pelos ocidentais) transformados em novos objectos. Bataille serviu-se da controvérsia gerada na cultura Ocidental pelos objectos primitivos, patente no comentário de Carlo Anti, em 1923, acerca da exposição de escultura Africana na XIII Exposição Internacional de Arte de Veneza de 1921:

“those modest figurines in wood and ivory seemed to say: there we are, who yesterday embodied the ideals of artists vainly striving to realize mistaken fancies of art-regeneration; behold us now what we used to be, mere fetishes of ingenuous savages” (p. 180).

No pólo oposto, com o texto de 1929 Savage Art Paul Éluard orienta a atitude do homem em relação à terra, à natureza, segundo a mágica força espiritual primitiva:

“If the savage affirms he is a man, it is to distinguish himself not from the animals, but from the spirits. If he is quiet they are quiet, if he sings they sing, if he dances they dance. He wears them on his face; he sacrifices their own kind to them, his own kind. (…) Fetishism is the opposite of religion” (p. 209).

O mapa surrealista colocara no seu centro o Oceano Pacífico; como explica Aragon (1928/1995: 122), o destino da viagem da investigação do surrealismo é o desconhecido[4]. Reagindo contra a recepção abstracta, no surrealismo de Breton, da ruptura instaurada pelo primitivismo Bataille, com o conceito objecto do fetiche, propõe um modelo de como o “outro” primitivo pode ser transgressor e, com Aragon, admite apenas uma estética no interesse das impurezas culturais e sincretismos perturbadores (FOSTER, 1985 in FLAM, DEUTCH, 2003: 387). No texto l’art primitif Bataille descreve as artes figurativas contemporâneas pelo processo de decomposição e destruição que elas operam, para algumas pessoas quase tão doloroso como a visão da decomposição de um cadáver; esta pintura putrefacta transforma objectos com uma violência sem precedentes e não manifesta as qualidades do realismo intelectual conotado com os selvagens e as crianças. Bataille é contra a tese de Luquet (que vem de Freud) segundo a qual a ontogénese recapitula a filogenia: o processo de transformação figurativa do homem pré-histórico não coincide com o da criança nem com o do selvagem contemporâneo. Portanto, no processo da arte figurativa do primitivismo age-se com uma violência sem precedentes na transformação de objectos, como se fosse a decomposição de um cadáver. Este cadáver também é o objecto primitivo e quem o assassinou foi o colonialismo. Bataille toca neste aspecto essencial quando destrói a estratégia de Einstein implícita em Aphorismes méthodiques (Documents, 1929) com a sua própria estratégia da violência do olhar aplicada às imagens de Documents, fazendo cair os pólos privilegiados da definição histórica da arte.

O discurso do trauma

Bachar serve a Raad como personagem-choque. Resiste à ocidentalização da história dos conflitos e por isso insiste em discutir de novo o caso Irão-Contras (na SECÇÃO C). Pretende ainda fundamentar o etnocentrismo da interpretação americana num certo trauma Ocidental.

Para Denis Hollier (1992: 20) o documento não é endogénico, distingue-se da imaginação. O documento é transcendente, heterogéneo e alienígena, tem uma capacidade de choque, tal como a do trauma. No artigo X Marks the Spot, no número 7 do segundo ano da revista Documents, Bataille sugere que a violência entre os gangsters tem uma função social: o público dos media satisfaz os seus instintos sádicos ao ver as imagens da morte violenta dos gangsters, num retorno do arcaico pelos rituais de sacrifício; como vimos, para Bataille a arte também tem estes instintos sádicos.

Na introdução do livro Post-traumatic Culture — injury and interpretation in the nineties Kirby Farrell assinala que a tortura pode ter uma utilização específica como resposta pós-traumática, ou seja, ser uma maneira de responder à crise gerada por um trauma anterior. Tal como nos explica Jean Améry (W. G. SEBALD, 2003/2006: 134), através da tortura o homem pode encontrar “poder, domínio do espírito e da carne, uma orgia de expansão pessoal sem peias”. Bataille viu na tortura e sacrifício o meio de lidar com a crise do fim da história, da morte de Deus e dos objectos estranhos de um outro violento. Nesse texto de Sebald, Contra o Irreversível — sobre Jean Améry o descomprometimento e a negatividade de Bataille em relação à história são análogos à atitude do escritor Améry:

“Améry continua a ser o único [na literatura alemã do pós-guerra] que denunciou a obscenidade de uma sociedade psicológica e socialmente deformada e a infâmia de supor que a história poderia depois prosseguir o seu curso sem problemas, como se nada tivesse acontecido” (p. 134).

Também Bachar, como Améry, não faz concessões à história e continua a protestar (p. 135). A personagem Bachar corporaliza a posição de resistência face ao discurso instaurado e ao silenciamento da memória. O autor Raad procura uma forma de linguagem na qual “seja possível exprimir vivências que paralisam a capacidade de falar” (p. 131). A partir do trabalho Type A, Fakhouri File, Notebook Volume 72, “Missing Lebanese Wars” Lepecki (2006: 92) comenta que a história parece nunca estar exactamente onde é suposto acontecer; Raad identifica e antevê uma deformação temporal constitutiva do relato histórico, no núcleo da própria possibilidade de documentar a violência das guerras civis. Numa entrevista de 2002, o artista questiona a forma de escrever a história dos acontecimentos que envolvem formas de extrema violência física e psíquica. Aí, considera que os documentos mais poderosos sobre um evento são os sintomas histéricos, e para que o documento possa ser identificado com o sintoma histérico é, portanto, essencial a problematização do tempo na narrativa histórica:

“(…) suggest that the most powerful documents of an event are those that arrive either before or after the fact; those constitutively incapable of participating contemporaneously with the event itself, those that reveal the event unfolding, reverberating, and acting years removed from the event” ((LEPECKI, 2006: 92).

No projecto The Atlas Group, a importância do trabalho ser designado documento e não falsificação, alucinação, representação ou fingimento, deriva da necessidade de o entender como sintoma de um trauma.

Procuramos na escrita de Bataille na revista Documents uma clarificação da noção de documento como sintoma em The Atlas Group. Considera Didi-Huberman, no estudo La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, que “Bataille le «subjectif» (irresponsable et pervers) revendique bien les formes (les morphologies objectives) et les purs «documents»;(…) Ce principe, je le nommerai une dialectique de l’attraction et du conflit. (1995: 203-204)”. Todos os termos batailleanos designam “une économie symptomale des formes (…). Dire symptôme, en ce contexte, c’est dire, d’abord, l’impossibilité (…) de la synthèse dans le processus dialectique” (p. 336). Os documentos provocadores de Raad e de Bataille são sintomas de um trauma. São, mais precisamente, uma resposta pós-traumática porque pertencem a um processo de interpretação da crise (FARRELL, 1998: 12). Como sublinha Didi-Huberman, “documents peut encore se lire comme une vaste symptomalogie des formes culturelles, un repérage formaliste des malaises dans la civilisation” (p.340-341). O trabalho de Walid Raad (os seus sintomas histéricos coleccionados) organiza uma história intersticial, entre os factos maiores que constam dos registos oficiais. Continua a ser um trabalho sobre a crise, já não apenas sobre a crise da guerra mas a crise da memória, o trauma colectivo. Didi-Huberman (1995: 339) identifica como segundas formas do sintomal no pensamento de Bataille, aquelas formas naturais, monstruosas, sem as quais o homem não poderia reconhecer-se. O baixo materialismo situa, na própria matéria de que o homem é feito, o sintoma sofrido ­— la mise en crise —  que prova ao homem ser como se imagina. Neste sentido, os americanos de The Bachar Tapes experimentaram um retorno ao arcaico que agiu sobre eles como processo terapêutico regenerador e reabilitador do ser. Recordamos (SECÇÃO D) que o retorno aconteceu primeiro de forma voluntária, quando os americanos escolheram deixar os EUA para viver no Líbano, e depois de forma forçada pelos captores, numa experiência ainda mais radical de privação e sofrimento. O método operacional de Raad replica e ironiza o processo de abaixamento-levantamento de Bataille. Na SECÇÃO E da entrevista Bachar surge contraditório: a figura de refém parece colidir com a figura de historiador. Bachar foi refém e permanece vítima de uma guerra civil; apela ao direito ao ressentimento (SEBALD, 2006: 137) mas acusa o estrangeiro, não os seus captores — o colonizador cultural americano, patrocinador da guerra, é acusado de hipocrisia e etnocentrismo porque Bachar percebe a acção mais perversa das politicas internacionais por detrás da dos seus carrascos físicos no cativeiro. Acreditamos ser possível uma relação ao mais baixo, à terra e à carne, que não seja estranha e sintomática mas familiar, sem que daí surja a negatividade; mas não para Bachar, nem para Bataille. Para Bachar, a tortura como terapêutica do problema da orientação sexual dos reféns (ligada ao tema batailleano do abaixamento da carne do homem submetido à condição de prisioneiro) não é apenas uma ironia sobre a doença da cultura americana; a questão vai mais longe, porque ao resumir a narrativa do seu livro ao tema do trauma do cativeiro e consequente reabilitação do amor familiar, cada americano ameaça, na História, a possibilidade de sobrevivência social do refém Bachar e o próprio reconhecimento da identidade libanesa.

O caso de estudo The Atlas Group apresenta e exibe sintomas, especifi-camente compreendidos como histéricos, num pós-guerra — são conflitos irresolúveis. Através de Bachar, Raad desmembra a imagem documental: tal como Bataille viu acontecer à forma nos quadros cubistas e no ecrã de projecção de Eisenstein, as personagens, o cenário e o enredo jornalístico e histórico de The Atlas Group são decompostos, explodidos[5].



O 3º NÍVEL DO ENREDO

“un certain rapport du fantasme au réel, comme expression du démenti, comme support déchiré de la vérité. La troisième exigence dialectique qu’auront partagée Bataille et Eisenstein, nous pouvon dès lors la nommer une dialectique du fantasme et du document” (DIDI-HUBERMAN, 1995: 310).

A organização The Atlas Group apresenta trabalhos que são como documentos e como trabalho sobre documentos; segundo Kaelen Wilson-Goldie (2004), são estranhas ligações estruturais entre história, memória e fantasia, entre o que se sabe ser verdade e aquilo em que se precisa acreditar. Walid Raad manipula os documentos como sintomas histéricos numa tentativa de estabelecer os fundamentos do conflito libanês:

“We are trying to find those stories that people tend to believe, [that] acquire their attention in a fundamental way, even if they have nothing to do with what really happened. (…) Traditional history tends to concentrate on what really happened, as if it’s out there in the world, and it tends to be the history of conscious events. Most people’s experience of these events… is predominantly unconscious and concentrates on facts, objects, experiences, and feelings that leave traces and should be collected”(RAAD, 2004).

Qualquer documento é relevante de um certo estatuto do evento a que se refere, e do efeito de campo de força do evento que ondula através do espaço e do tempo. Raad elege o documento como forma e fá-lo em sintonia com a arqueologia de Foucault: retraça um processo de decisão que se desdobra ao longo do tempo mantendo o real em tensão. O trabalho de Walid Raad é pertinente num processo de análise cultural no qual nada deve ser considerado perdido para a história (BENJAMIN, 1940). A responsabilidade ética de Raad põe em acção a política indispensável de usar o documento na produção de outros, operando com a energia histórica e a lógica violenta sem a qual não poderia reactivar as ruínas da história. 

O vídeo de Bachar é inquietante, deixa no espectador um sentimento de desconforto e estranheza perante o autor/intérprete e a sua obra. Há uma primeira estranheza intrínseca ao objecto como documento, pelas suas características formais. As imagens sugerem-nos um processo cerebral flutuante, oposto a uma descrição da consciência como continuum. Circulam entre o documental e a ficção, relacionando linguagem e imagem. Esta forma de realizar a montagem, característica da arte vídeo dos anos 90 (HAUSTEIN in FROHNE, 1999: 111, 115) deve-se também à revista Document. Tal como faria Bataille, Raad endendeu que

“il faudrait placer, comme l’interface de tous les éléments en jeu dans cette paradoxale connaissance, l’image, en tant que principe d’une mise en mouvement où «les contenus se perdent les uns dans les autres». (…) Monter des images dans le mouvement de leur déformation, voilà donc qui pouvait offrir un moyen fondamental — fondamentalement antiplatonicien, fondamentalement non hégélien — de produire une dialectique symptomale, une dialectique accidentelle” (DIDI-HUBERMAN, 1995: 351- 352).

The Bachar Tapes #17 and 31 está documentado no catálogo em imagens de frames nas páginas de um outro livro: exceptuando a capa, contra capa, páginas do índice e demais informação sobre a edição, todo o catálogo é como o documento de um outro catálogo fac-similado. Reunidas as experiências (mesmo que apenas virtualmente, através deste texto) de ver o vídeo, ler a entrevista e manusear o catálogo, acedemos ao 3º nível do enredo da obra.

Observamos na SECÇÃO A que Raad apresenta uma base de realidade (os reféns e os seus livros) a partir da qual monta a ficção The Bachar Tapes. Sobre esta construção citamos Freud:

“It is true that the writer creates a kind of uncertainty in us in the beginning by not letting us know, no doubt purposely, whether he is taking us into the real world or into a purely fantastic one of his own creation. (…) This is that an uncanny effect is often and easily produced when the distinction between imagination and reality is effaced” (1917: 9, 20).

A montagem combinada de realidade e ficção cria um espaço ambíguo mas que não é, só por si, provocador de um desassossego no espectador. No entanto, consegue criar um ambiente propício ao surgimento do uncanny. Também na SECÇÃO B observamos a criação de um espaço para a manifestação do uncanny com Bachar a admitir ter feito batota na tradução para inglês do texto original em árabe no vídeo — aqui, Bachar, ciente das repercursões paranóicas do desconhecido no Americano, consegue exarcebar a deformação espacial.  Com o catálogo nas mãos, a entrevista de Walid Raad a Souheil Bachar introduz-nos o uncanny sob o tema do duplo: porque é a entrevista do autor a si próprio, associamos Raad a Bachar. Freud considera que todos os temas da inquietante estranheza estão relacionados com o fenómeno do duplo:

“the ‘double’, which appears in every shape and in every degree of development (…). Or it is marked by the fact that the subject identifies himself with someone else, so that he is in doubt as to which his self is, or substitutes the extraneous self for his own. (…) a doubling, dividing and interchanging of the self” (p. 12).

O autor/personagem Raad/Bachar é o fantasma do primitivo; insistimos em pensá-la como real porque nos prometeu uma outra verdade mais fundamental e, assim, resistimos à ilusão por termos reagido como se fosse autêntica (FREUD, 1917: 20), quando a vimos projectada no ecrã.

 



Notas:

[1] De facto, na exposição na Culturgest, em Lisboa, o vídeo é apresentado na versão inglesa.

[2] Daydream nation é título de um álbum de Sonic Youth, um dos grupos de música alternativa mais fundamentais dos anos 90. 

[3] Título de um texto de 1919 de Paul Guillaume.

[4] Tal como explica Aragon no Tratado do Estilo, “Na experiência surrealista propriamente dita, muito pelo contrario, é como se a linha curva de um elemento móvel, de que nada sabemos, se viesse nela inscrever, Seriam vocês capazes de se pôr a discutir as variações desta linha curva? E em nome de quê? Os seus altos e baixos, as interrupções, valem por aquilo que exprimem e é desconhecido. Nessa investigação se lançaram os que prosseguem a presente experiência, sempre em busca desse desconhecido.”

[5] Explodidos, tal como o carro-bomba que, informa-nos Raad no trabalho My Neck is Thinner than a Hair sobre a utilização de carros bomba nas guerras civis libanesas entre 1975 e 1991, foi intensamente documentado pela imprensa.



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DIDI-HUBERMAN, Georges, La Ressemblance Informe ou le Gai Savoir Visuel selon Georges Bataille, Paris, Macula 1995

EINSTEIN, Carl, “Aphorismes méthodiques” in “Documents”, 1929, #1

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FLAM, Jack, DEUTCH, Miriam, Primitivism and Twentieth-Century Art, Berkeley, U. California Press.

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WILSON-GOLDIE, Kaelen, “Walid Raad: The Atlas Group Opens its Archives” in “Bidoun”, We Are Old, issue 02, Fall, 2004 in http://www.bidoun.com.


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[*] Joana Mateus é formada em Artes Plásticas e Arte Multimédia pela FBAUP. Actualmente, finaliza o Curso de Doutoramento em Ciências da Comunicação na FCSH - UNL.

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