O termo que melhor descreve a presente condição social é "liquescência". Os outrora incontestáveis pilares da estabilidade, como Deus ou a Natureza, caíram no buraco negro do cepticismo, dissolvendo a identificação da localização do sujeito ou do objecto. O significado flui por um processo simultaneamente de proliferação e condensação, ora derivando, ora deslizando ou precipitando-se nas antinomias do apocalipse e da utopia. O lugar do poder — e o sítio da resistência — fica numa zona ambígua, sem fronteiras. De que outro modo poderia ser, quando os vestígios do poder fluem da dinâmica nómada para estruturas sedentárias — da hipervelociadade para a hiperinércia? Talvez seja utópico alegar que a resistência principia (e termina?) com uma rejeição nietzchiana da gema da catatonia inspirada pela condição pós-moderna, e no entanto a natureza demolidora da consciência não deixa muitas alternativas.
Esbracejar à tona da piscina do poder líquido não é necessariamente uma imagem de aquiescência e cumplicidade. Apesar da sua situação bizarra, o activista político e o activista cultural (anacronicamente conhecido por artista) continuam a poder agitar. Embora esses gestos se assemelhem mais aos de alguém prestes a afogar-se, e não se saiba ao certo o que é que está a ser agitado, numa situação dessas a sorte dos dados pós-modernos favorece o acto de agitação. Afinal de contas, que outra hipótese existe? É por isso que as anteriores estratégias de "subversão" (palavra que, no discurso crítico, pouco mais peso tem do que a de "comunidade"), ou ataque camuflado, se viram envolvidas numa nuvem de suspeita. Para saber o que subverter é preciso que as forças de opressão sejam estáveis, passíveis de serem identificadas e separadas — princípio que parece demasiado fantástico numa época de dialéctica em ruínas. Para saber como subverter é preciso ter um entendimento da oposição baseado no domínio da certeza ou (no mínimo) da forte probabilidade. A velocidade a que as estratégias de subversão são cooptadas mostra que a adaptabilidade do poder é muitas vezes subestimada; contudo, deve reconhecer-se o mérito dos resistentes, na medida em que o acto, ou produto subversivo, não é cooptativamente reinventado ao ritmo que a estética burguesa da eficiência poderia ditar.
O curioso entrelaçamento do cínico e do utópico no conceito de agitação como uma aposta indispensável constitui uma heresia para todos aqueles que continuam a aderir às narrativas do século XIX, nas quais os mecanismos e a(s) classe(s) opressora(s), bem como as tácticas necessárias para os derrubar, estão claramente identificadas. Afinal, a aposta está intimamente relacionada com as justificações conservadoras para o Cristianismo e com a tentativa de apropriação da retórica e dos modelos racionalistas usados para persuadir os perdidos a regressar à escatologia tradicional. Um cartesiano rejeitado como Pascal, ou um revolucionário rejeitado como Dostoiewski, tipificam a sua utilização. É preciso, todavia, levar em conta que a promessa de um futuro melhor, quer secular, quer espiritual, sempre pressupôs a economia da aposta. A relação entre História e necessidade torna-se cinicamente cómica quando, do monte de destroços culturais deixados pela revolução e pela pré-revolução, olhamos para trás. As revoluções francesas entre 1789 e 1968 nunca detiveram a maré obscena do produto de consumo (parecem mesmo ter-lhe facilitado a vida) e tanto a revolução russa como a cubana limitaram-se a substituir o produto de consumo pelo totalitarismo anacrónico da burocracia. Quando muito, essas rupturas forneceram a estrutura para uma revisão nostálgica de momentos de autonomia provisória reconstruídos.
O produtor de cultura não conseguiu muito melhor. Mallarmé introduziu o conceito de aposta em Un coup de dés e, talvez sem dar por isso, libertou a imaginação do cárcere do transcendentalismo que ele esperava defender, além de livrar o artista do mito do sujeito poético. (Parece razoável referir que Sade já realizara essas tarefas muito mais cedo). Duchamp (o ataque ao essencialismo), Cabaret Voltaire (a metodologia da produção aleatória) e o Dada de Berlim (desaparecimento da arte, que passa a ser incluída na acção política), todos eles agitaram as águas culturais e, no entanto, abriram uma das portas culturais ao ressurgimento do transcendentalismo, na fase final do surrealismo. Em reacção aos três supracitados, abriu-se também uma passagem ao domínio formalista (ainda hoje o demónio do texto-cultura) que restringiu o objecto cultural ao mercado de luxo do capitalismo tardio. Todavia, a aposta desses arautos da agitação voltou a injectar no sonho de autonomia a anfetamina da esperança, que confere aos produtores culturais e activistas contemporâneos a energia necessária para regressarem à mesa de jogo electrónica e voltarem a lançar os dados.
Em As Guerras Pérsicas, Heródoto fala de um povo temível, os Citas, que mantinha uma sociedade agrícola nómada por contraste com os impérios sedentários do "berço da civilização". A pátria dos Citas, na região setentrional do Mar Negro, era climatérica e geograficamente inóspita, não sendo, porém, essa a principal razão de ter resistido à colonização, mas sim a inexistência de meios económicos ou militares que pudessem ser colonizados ou subjugados. Sem cidades nem territórios fixos, essa "horda errante" nunca podia ser verdadeiramente localizada. Por isso mesmo, era impossível fazê-los tomar uma posição defensiva e conquistá-los. Conservaram a sua autonomia através do movimento, dando aos inimigos a impressão de que estavam sempre em toda a parte, preparados para atacar, mesmo quando estavam ausentes. O terror que os Citas inspiravam justificava-se plenamente, uma vez que organizavam frequentes ofensivas militares, embora ninguém soubesse onde, até finalmente eles surgirem ou serem detectados vestígios do seu poder. Uma fronteira movediça delimitava a pátria dos Citas, mas para eles o poder nada tinha a ver com ocupação do espaço. Andavam de terra em terra e iam conquistando territórios e tributos conforme as suas necessidades, por onde iam passando. Deste modo, construíram um império invisível que dominou a "Ásia" durante vinte e sete anos e se estendia para sul até ao Egipto. O império em si não era sustentável, visto que a sua natureza nómada não considerava a necessidade de posse de terras, nem via nela qualquer interesse. (Não instalavam praças-fortes no território dos povos vencidos.) Vagueavam livremente de terra em terra, pois os seus adversários depressa compreenderam que, mesmo quando a vitória cita parecia pouco provável, por uma questão de sentido prático era sempre melhor não os combater e concentrar o esforço económico e militar noutros povos sedentários — isto é, em sociedades com uma infra-estrutura que pudesse ser localizada e destruída. Essa política era geralmente reforçada pelo facto de um combate com os Citas obrigar o inimigo a revelar-lhes a sua posição. Era extremamente raro os Citas serem apanhados numa posição defensiva. Se as perspectivas do combate não lhes agradassem, tinham sempre a opção de permanecer invisíveis, impedindo o adversário de construir um teatro de operações.
Este modelo arcaico de distribuição do poder e estratégia predatória foi reinventado pela elite do poder do capitalismo tardio e mais ou menos com os mesmos objectivos. A sua reinvenção baseia-se na abertura tecnológica do ciberespaço, onde velocidade/ausência e inércia/presença colidem na hiper-realidade. O modelo arcaico do poder nómada, outrora um meio usado para formar um império errante, evoluiu para um meio sustentado de domínio. Num Estado de sentido duplo, a sociedade contemporânea de nómadas torna-se tanto um campo de poder difuso, não localizado, como uma máquina visual fixa, apresentada como espectáculo. O primeiro abre caminho à economia global e a segunda funciona como praça-forte em vários territórios, conservando a natureza de produto de consumo, com uma ideologia própria da área em questão.
Embora tanto o campo de poder difuso como a máquina visual se encontrem integrados tecnologicamente e ambos sejam peças fundamentais do império global, é o primeiro que cumpre plenamente o mito cita. A passagem de um espaço arcaico para uma rede electrónica proporciona uma vantagem complementar ao poder nómada: os nómadas militarizados estão sempre na ofensiva. A obscenidade do espectáculo e o terror da velocidade são seus companheiros fiéis. Na maioria dos casos, as populações sedentárias submetem-se à obscenidade do espectáculo e pagam resignadamente o tributo que lhes é exigido sob a forma de trabalho, material e lucro. Primeiro Mundo, Terceiro Mundo, nação ou tribo, todos têm de pagar tributo. Todas as nações, classes, raças e géneros, diferenciados e hierárquicos, da sociedade moderna sedentária partilham, sob o domínio nómada, o papel de seus funcionários — guardiões da ciberelite. Esta divisão, mediada pelo espectáculo, oferece tácticas que ultrapassam o modelo nómada arcaico. Em vez de um hostil saque a um adversário, tem lugar uma pilhagem simpática, conduzida de forma sedutora e extática, contra o passivo. A hostilidade do oprimido é desviada para a burocracia, que se encarrega de encaminhar o antagonismo para fora do campo de poder nómada. A invisibilidade conferida pela incapacidade de localização impede os que se encontram na prisão circular espacial de definir um sítio de resistência (um teatro de operações); em vez disso, eles são apanhados numa armadilha de resistência histórica aos monumentos do capital morto. (Direito ao aborto? Ocupem a escadaria do Supremo Tribunal. Para a liberalização das drogas que retardam o desenvolvimento do HIV, manifestem-se frente aos hospitais.) É na anulação da necessidade de atitudes defensivas que reside a maior força dos nómadas.
Enquanto os centros de informação electrónica são inundados de ficheiros de pessoas electrónicas (pessoas transformadas em historiais de crédito, tipos de consumidores, padrões, tendências, etc.), investigação electrónica, dinheiro electrónico e outras formas de poder da informação, o nómada pode navegar livremente pela rede electrónica e atravessar as fronteiras nacionais, com o mínimo de resistência por parte das burocracias nacionais. O domínio privilegiado do espaço electrónico controla a física logística do fabrico, visto que o fornecimento de matérias-primas e bens manufacturados requer autorização e orientação electrónicas. Esse poder tem de ser remetido para o ciberdomínio, sob pena de a eficácia (logo, a rendibilidade) dos complexos processos de produção, distribuição e consumo ser frustrada por uma falha de comunicação. O mesmo vale para as forças armadas; existe um controlo ciberelitista dos recursos da informação e da dispersão. Sem comando nem controlo, as forças armadas imobilizam-se ou, na melhor das hipóteses, ficam limitadas a uma dispersão caótica num espaço determinado. Assim, todas as estruturas sedentárias se tornam servas dos nómadas.
A própria elite nómada é frustrantemente difícil de localizar. Já em 1956, quando C. Wright Mills escreveu The Power Elite, ficou claro que a elite sedentária conhecia já a importância da invisibilidade. (O que representava uma grande mudança em relação às avultadas marcas espaciais de poder usadas pela aristocracia feudal.) Mills descobriu que era impossível obter qualquer tipo de informação directa sobre a elite, só lhe restando especulações retiradas de categorias empíricas duvidosas (por exemplo, os registos sociais). Com a deslocação da elite contemporânea de áreas urbanas centralizadas para o descentralizado e não territorial ciberespaço, o dilema de Mills agravou-se ainda mais. Como avaliar criticamente um tema que é impossível localizar, examinar e mesmo ver? A análise de classes atinge o ponto de exaustão. Subjectivamente existe um sentimento de opressão e no entanto é difícil localizar, quanto mais identificar, um opressor. O mais provável é esse grupo não constituir sequer uma classe — ou seja, um agregado de pessoas com os mesmos interesses políticos e económicos —, mas sim uma consciência militar de elite da qual se fez download. A ciberelite é hoje uma entidade transcendente que só pode ser imaginada. Se dispõe ou não de motivos programados integrados, ninguém sabe. Talvez sim, ou talvez as suas acções predatórias fragmentem a sua solidariedade, deixando caminhos electrónicos comuns e pilhas de informação como base única para a unidade. A paranóia da imaginação é o fundamento de um milhar de teorias conspiratórias — todas elas verdadeiras. Lancem os dados.
O desenvolvimento de um poder nómada ausente e potencialmente inexpugnável, juntamente com a visão retroactiva da revolução em ruínas, quase emudeceu a voz da contestação. Tradicionalmente, em épocas de desilusão proliferam as estratégias de retirada. Para o produtor cultural, inúmeros exemplos de participação cínica povoam a paisagem da resistência. O que faz pensar na experiência de Baudelaire. Em 1848, em Paris, Baudelaire combateu nas barricadas, animado pela noção de que "propriedade é roubo", para voltar ao niilismo cínico quando viu que a revolução falhara. (Baudelaire nunca conseguiu render-se completamente. O seu emprego do plágio como estratégia colonial invertida não pode deixar de recordar a noção de que propriedade é roubo.) O primeiro projecto surrealista de André Breton — que sintetizava a libertação do desejo com a libertação do trabalhador — ganhou corpo com a ascensão do fascismo. (As discussões entre Breton e Louis Aragon sobre o papel do artista como agente da revolução não devem ser ignoradas. Breton nunca conseguiu abandonar a ideia do eu poético como narrativa privilegiada.) Breton tornou-se cada vez mais místico na década de trinta e acabou por se refugiar no transcendentalismo. A tendência do trabalhador cultural desiludido para se voltar para a introspecção e evitar responder à pergunta colocada pelo Iluminismo "Que fazer com a situação social à luz do poder sádico?", é um exemplo de vida pela negativa. Não que a libertação interior seja indesejável ou desnecessária; nunca, porém, poderá ser singular nem privilegiada. Virar as costas à revolução na vida quotidiana e colocar a resistência cultural sob a autoridade do eu poético sempre conduziu à produção cultural, a mais fácil de burocratizar e transformar num produto de consumo.
Do ponto de vista do pós-modernismo americano, o conceito oitocentista do eu poético (tal como é delineado pelos decadentes, pelos simbolistas, pelo grupo dos nabis, etc.) equivale hoje a cumplicidade e aquiescência, quando apresentada pura. A cultura da apropriação eliminou essa opção. (Tem ainda algum valor como ponto de intersecção. Por exemplo, Bell Hooks usa-a para introduzir outros discursos.) Embora esteja a precisar de ser revista, a palavra de ordem modernista de Asger Jorn "A vanguarda nunca desiste!" continua a ter alguma relevância. A revolução em ruínas e o labirinto da apropriação esvaziaram a reconfortante certeza da dialéctica. O separar das águas marxista, durante o qual os meios de opressão possuíam uma identidade clara e o caminho da resistência era unilinear, desapareceu no vazio do cepticismo. No entanto, isso não é razão para as pessoas se renderem. Georges Bataille, surrealista votado ao ostracismo, apresenta uma opção ainda não totalmente explorada: na vida quotidiana, em vez de enfrentar a estética da utilidade, atacar pela retaguarda, por meio da economia não-racional do perverso e do sacrificial. Tal estratégia oferece a possibilidade de intersectar a agitação externa e interna.
A importância do movimento da desilusão, de Baudelaire a Artaud, foi os seus membros terem imaginado a economia sacrificial. Contudo, a ideia que tinham dela era, em geral, limitada a um teatro de tragédia elitista e por conseguinte reduzia-a a um tema de exploração "artística". Para complicar ainda mais as coisas, a apresentação artística do perverso era sempre tão séria que os sítios de aplicação eram muitas vezes ignorados. A assombrosa constatação de Artaud de que aparecera o corpo sem órgãos, embora ele não tivesse bem a certeza do que isso poderia ser, limitava-se à tragédia e ao apocalipse. Sinais e vestígios do corpo sem órgãos surgem ao longo da experiência terrena. O corpo sem órgãos é Ronald McDonald, não uma estética esotérica; afinal, existe um espaço crítico para a comédia e o humor como meios de resistência. Talvez esse seja o maior contributo da Internacional Situacionista para a estética pós-moderna. O Nietzche bailarino existe.
Além da retirada tornada estética, uma variedade mais sociológica agrada aos resistentes românticos — uma versão primitiva do desaparecimento nómada. Trata-se da retirada desiludida para áreas fixas que iludem a vigilância. Tipicamente, a retirada dá-se para as áreas rurais onde a cultura é mais neutralizada, ou para bairros urbanos onde a noção de território não existe. O princípio básico é alcançar a autonomia ocultando-se da autoridade social. Tal como nas sociedades de bandos, cuja cultura não pode ser atingida porque não pode ser localizada, a liberdade de todos os que participam no projecto é intensificada. Contudo, e ao contrário das sociedades de bandos, que emergem num dado território, estas comunidades transplantadas são sempre atreitas a infecções contraídas através do espectáculo, da linguagem e mesmo da nostalgia pelos ambientes, rituais e hábitos anteriores. Essas comunidades são inerentemente instáveis (o que não é necessariamente negativo). Se essas comunidades podem ou não ser transformadas em bases de resistência eficazes, deixando de ser acampamentos para desiludidos e derrotados (como na América dos finais da década de sessenta, princípios da década de setenta), é o que ainda se há-de ver. Resta saber, porém, se uma eficaz base de resistência sedentária não será rapidamente exposta e minada, não chegando a durar o suficiente para ter qualquer efeito.
Outra narrativa do século XIX que persiste para além das suas fronteiras naturais é o movimento operário — isto é, a noção de que a chave da resistência é mandar um grupo organizado de trabalhadores suspender a produção. Tal como a ideia de revolução, a ideia de sindicato caiu por terra e talvez nunca tenha existido na vida quotidiana. A ubiquidade das greves suspensas, cedências e dispensas demonstra que aquilo a que se chama sindicato não passa de burocracia operária. A fragmentação do mundo — em nações, regiões, Primeiro e Terceiro Mundos, etc., como meio de disciplina utilizado pelo poder nómada — tornou anacrónicos os movimentos operários nacionais. Os sítios de produção são demasiado móveis e as técnicas de gestão demasiado flexíveis para que a acção dos trabalhadores seja eficaz. Se numa determinada área a mão-de--obra oferece resistência às exigências empresariais, rapidamente se encontra mão-de-obra alternativa. Os acontecimentos nas fábricas da Dupont e da General Motors no México, por exemplo, mostram bem essa faculdade nómada. Enquanto colónia de mão-de-obra, o México também permite a redução dos custos unitários, pois elimina os "níveis salariais" e os benefícios primeiro-mundistas dos trabalhadores. A velocidade do mundo empresarial é paga pela intensificação da exploração; a fragmentação sustentada do tempo e do espaço torna-a possível. A dimensão e o desespero da mão-de-obra do Terceiro Mundo, em conjunção com sistemas políticos cúmplices, deixam as organizações de trabalhadores sem qualquer base de negociação.
Os situacionistas tentaram resolver esse problema rejeitando o valor tanto do trabalho como do capital. Toda a gente devia deixar de trabalhar — proletários, burocratas, fornecedores de serviços, toda a gente. Embora a ideia pareça simpática, pressupõe uma unidade impraticável. A noção de greve geral era demasiado circunscrita; atolou-se em lutas nacionais, nunca chegando a sair de Paris e, no fim, poucos estragos provocou na máquina global. A esperança de uma greve mais elitista, que se manifestava através de ocupações foi uma estratégia que também morreu à nascença, e pela mesma razão.
O gosto situacionista pelas ocupações é interessante na medida em que consiste numa inversão do direito aristocrático à propriedade, embora esse mesmo facto o torne suspeito, visto que nem as estratégias modernas se deviam limitar a procurar inverter as instituições feudais. A relação entre ocupação e propriedade, tal como é apresentada no pensamento social conservador, foi adoptada pelos revolucionários na primeira Revolução Francesa. A libertação e ocupação da Bastilha foi importante não tanto pela meia dúzia de prisioneiros soltos mas sim por ter chamado a atenção para o facto de que a propriedade tomada através da ocupação é um pau de dois bicos. Essa inversão transformou a noção de propriedade numa justificação conservadoramente viável para o genocídio. No genocídio irlandês da década de 1840, os proprietários de terras ingleses aperceberam-se de que seria mais proveitoso usar as suas terras para criar gado do que manter os rendeiros que tradicionalmente as ocupavam. Quando uma praga atacou as batatas e destruiu as plantações dos rendeiros, deixando-os impossibilitados de pagar as rendas, viram aí uma oportunidade para uma ordem de despejo em massa. Os proprietários ingleses requisitaram, e receberam, auxílio militar de Londres para obrigarem os agricultores a partir e para se certificarem de que eles não iam regressar. Como é óbvio, os agricultores achavam que tinham o direito de continuar nas terras devido à antiguidade da sua ocupação, independentemente de pagarem ou não as rendas. Infelizmente, os rendeiros foram transformados em simples população excedentária, visto que o seu direito de propriedade por usucapião não foi reconhecido. Aprovaram-se leis que lhes negavam o direito a emigrarem para Inglaterra e milhões de pessoas morreram, obrigadas a passar o Inverno irlandês sem comida nem um tecto. Algumas conseguiram emigrar para os EUA e continuaram vivas, mas apenas como miseráveis refugiados. Entretanto, nos próprios EUA o genocídio dos índios seguia a bom ritmo, em parte justificado pela ideia de que, como os índios não possuíam terras, todo o território era livre e se fosse ocupado (investido de valor sedentário) podia ser "defendido". A teoria da ocupação é mais amarga do que heróica.
No período pós-moderno do poder nómada, os movimentos de trabalhadores e as ocupações não foram relegados para o monte de entulho histórico, mas também não continuaram a ter a importância de outros tempos. A elite do poder, depois de se ter visto livre das suas bases nacionais e urbanas e passar a navegar pelas rotas electrónicas, já não pode ser abalada por estratégias baseadas na contestação das forças sedentárias. Os monumentos arquitectónicos do poder estão ocos e vazios e hoje funcionam apenas como bunkers para cúmplices e complacentes. São locais seguros que apresentam apenas vestígios de poder. Como acontece com toda a arquitectura monumental, silenciam a resistência e a indignação por meio de sinais de resolução, continuidade, consumismo e nostalgia. Esses lugares podem ser ocupados, mas fazê-lo não perturba o fluxo nómada. Quando muito, essa ocupação é uma forma de agitação que pode ser tornada invisível através da manipulação dos meios de comunicação social; um bunker particularmente valioso (como a burocracia) pode ser facilmente reocupado pela máquina de guerra pós-moderna. Os bens electrónicos existentes no interior do bunker não podem, é claro, ser tomados com medidas físicas.
A teia que faz a ligação entre os bunkers — a rua — tem tão pouco interesse para o poder nómada que foi oferecida à classe baixa. (A única excepção é o maior monumento à máquina de guerra jamais construído: a Rede de Auto-Estradas Interestaduais. Ainda valorizado e bem defendido, esse local praticamente não mostra quaisquer sinais de perturbação.) Oferecer a rua à mais alienada das classes é uma forma de garantir que a única coisa que lá poderá ocorrer é a alienação total. A polícia, mas também os criminosos, os alcoólicos, os toxicodependentes e mesmo os sem-abrigo estão a ser usados como agitadores do espaço público. A actual aparência da classe baixa, juntamente com o espectáculo dos meios de comunicação social, permitiu que as forças da ordem fabricassem a percepção histérica de que as ruas são perigosas, insalubres e não servem para nada. A promessa de segurança e normalidade atrai hordas de desprevenidos para espaços públicos privatizados, como os centros comerciais. O preço desse proteccionismo é a renúncia à soberania individual. Nada e ninguém, a não ser o produto de consumo, tem direitos no centro comercial. As ruas, em particular, e os espaços públicos, em geral, estão em ruínas. O poder nómada dirige-se ao seu público através da auto-experiência dos meios de comunicação electrónicos. Quanto menos público houver, mais facilmente a ordem será mantida.
A vanguarda nunca desiste e no entanto as limitações dos antiquados modelos e focos de resistência tendem a empurrar essa resistência para o vazio da desilusão. É importante manter os bunkers sitiados; contudo, o vocabulário da resistência deve ser alargado de modo a incluir meios de agitação electrónicos. Tal como a autoridade que outrora patrulhava as ruas enfrentava barricadas e manifestações, a autoridade que patrulha o espaço electrónico tem de enfrentar formas electrónicas de resistência. As estratégias espaciais podem não ser vitais neste esforço, mas são um apoio necessário, pelo menos no caso da agitação de eficácia garantida sobre um grande número de organismos. Também essas velhas estratégias de ameaça física estão muito desenvolvidas, o que não acontece com as electrónicas. Chegou a altura de as atenções se voltarem para a resistência electrónica, tanto em termos do bunker como do campo nómada. O espaço electrónico é uma área sobre a qual pouco se sabe; num jogo deste teor, é preciso estar--se preparado para enfrentar os perigos ambíguos e imprevisíveis de uma resistência ainda não experimentada. Devem ser feitos preparativos para o pau de dois bicos.
A resistência ao poder nómada deve ser exercida no ciberespaço e não no espaço físico. O jogador pós-moderno é um jogador electrónico. Um grupo pequeno mas coordenado de piratas informáticos, ou hackers, poderia introduzir toda a espécie de vírus nos bancos de dados, programas e redes da autoridade, possivelmente levando a força destruidora da inércia para o domínio nómada. A inércia prolongada equivale ao colapso da autoridade nómada a nível global. Tal estratégia não requer uma acção de classe unificada, nem uma acção simultânea em diversas áreas geográficas. O menos niilista podia ressuscitar a estratégia da ocupação mantendo dados, em vez de propriedades, como reféns. Seja qual for o meio através do qual a autoridade electrónica é perturbada, o importante é agitar exaustivamente o comando e o controlo. Nessas condições, no entrelaçamento militar/empresarial o capital morto transforma-se num esgoto económico — material, equipamento e força de trabalho deixariam de poder ser distribuídos. O capitalismo tardio sucumbiria ao seu próprio peso excessivo.
Muito embora esta sugestão não seja mais do que ficção científica, a verdade é que este relato revela problemas que têm mesmo que ser abordados: é mais do que óbvio que os que combatem a ciber-realidade constituem, de um modo geral, um grupo despolitizado. A maioria dos casos de infiltração no ciberespaço tem sido ou simples brincadeira e vandalismo (como no caso do agressivo programa de Robert Morris, ou a série de vírus dos PC, como o "Michaelangelo"), espionagem politicamente mal orientada (o acesso pirata aos computadores militares por Markus Hesse, provavelmente muito proveitoso para o KGB) ou uma vingança pessoal contra determinada fonte de autoridade. O código de ética hacker* desencoraja qualquer acto de agitação no ciberespaço. Mesmo a Legion of Doom (um grupo de jovens hackers que aterrorizou os Serviços Secretos) alega que nunca danificou um sistema. As suas actividades foram motivadas por simples curiosidade em relação aos sistemas informáticos e por acreditarem no livre acesso à informação. Para além destas preocupações muito particulares com a descentralização da informação, a acção e o pensamento políticos nunca existiram verdadeiramente no espírito do grupo. Quaisquer problemas que os jovens possam ter tido com a polícia (e apenas alguns violaram a lei) resumiram-se a fraudes com cartões de crédito ou invasão electrónica. O problema é muito semelhante ao dos cientistas politizados cujo trabalho conduz ao desenvolvimento de novas armas. Apetece perguntar: "Como é possível pedirem a esta classe para desestabilizar ou arrasar o seu próprio mundo?". Para dificultar ainda mais as coisas, apenas alguns possuem os conhecimentos especializados para essas acções. A ciber-realidade profunda é a menos democratizada de todas as fronteiras. Como já foi dito, os cibertrabalhadores enquanto classe profissional não precisam de estar completamente unidos, mas então como reunir membros dessa classe em quantidade suficiente para pôr em prática uma ruptura, sobretudo estando a ciber-realidade sob a mais eficaz das autovigilâncias?
Todos estes problemas atraíram muitos "artistas" aos meios electrónicos e é por isso que alguma da arte electrónica contemporânea tem uma forte carga política. Uma vez que não é provável serem os trabalhadores científicos ou técnicos a elaborar uma teoria da agitação electrónica, é aos artistas-activistas (bem como a outros grupos envolvidos) que compete ajudar a criar um discurso crítico sobre o que é que está realmente em jogo no desenvolvimento desta nova fronteira. Apropriando-se da autoridade legitimada da "criação artística", e utilizando-a para estabelecer um fórum público para discussão do modelo de resistência no âmbito da emergente tecnocultura, o produtor cultural pode contribuir para a perpétua luta contra o autoritarismo. Além disso, as estratégias concretas de comunicação imagem/texto, desenvolvidas com recurso à tecnologia que se escapa pelas frinchas da máquina de guerra, tornarão mais fácil aos interessados a tarefa de inventar material explosivo para lançar aos bunkers político-económicos. Cartazes e panfletos, o teatro de rua, a arte pública, tudo isso foi útil no passado. Porém, como já foi dito, que é feito do "público?" Quem é que anda hoje nas ruas? A julgar pela quantidade de horas de televisão que uma pessoa vê em média por dia, parece que o público está ocupado electronicamente. O mundo electrónico, porém, não está de modo algum completamente estabelecido e chegou a altura de tirar partido dessa fluidez através da invenção, antes de ficarmos limitados à crítica como arma única.
Os bunkers foram já descritos como espaços públicos privatizados que desempenham várias funções específicas, como por exemplo a continuidade política (serviços públicos e monumentos nacionais), ou áreas destinadas ao consumo desenfreado (centros comerciais). Na mesma linha da tradição feudal da mentalidade da fortaleza, o bunker garante segurança e normalidade em troca da renúncia à soberania individual. Pode agir como um elemento sedutor, oferecendo ao cúmplice uma ilusão credível de consumo não-compulsivo e paz ideológica, ou pode agir como uma força agressiva exigindo a aquiescência do resistente. O bunker reúne quase todos no seu interior, à excepção dos que ficam a guardar as ruas. Ao fim e ao cabo, o poder nómada não oferece a opção de não trabalhar, nem a de não consumir. O bunker é um elemento com uma presença tão forte na vida quotidiana que mesmo o maior dos resistentes nem sempre o aborda criticamente. A alienação provém, em parte, dessa queda incontrolável na armadilha que é o bunker.
Tal como a sua função, o aspecto do bunker varia. O bunker nómada — o produto da "aldeia global" — tem uma forma electrónica mas também arquitectónica. A forma electrónica é encarada como meio de comunicação; enquanto tal, tenta colonizar a residência particular. A diversão informativa flui numa torrente interminável de ficções produzidas por Hollywood, Madison Avenue e pela CNN. A economia do desejo pode ser vista em toda a segurança através da janela familiar do ecrã. A salvo no bunker electrónico, uma vida de auto-experiência alienada (perda do social) pode prosseguir em tranquila aquiescência e profunda privação. O espectador é levado para o mundo e o mundo é levado à presença do espectador, tudo mediado pela ideologia do ecrã. Uma vida virtual num mundo virtual.
Tal como o bunker electrónico, o bunker arquitectónico é outro local onde a hipervelocidade e a hiperinércia se intersectam. Estes bunkers não se restringem às fronteiras nacionais; de facto, abarcam o mundo inteiro. Embora na realidade não se movam no espaço físico, transmitem a impressão de que estão em toda a parte ao mesmo tempo. A arquitectura em si varia muito, mesmo no caso dos modelos particulares; contudo, o logótipo ou símbolo de um modelo particular é universal, como o são os seus consumíveis. De uma maneira geral, é a sua participação redundante nestas características que o torna tão sedutor.
Este tipo de bunker é característico da primeira tentativa que o poder capitalista fez de se tornar nómada. Durante a Contra-Reforma, quando a Igreja católica se apercebeu, em pleno Concílio de Trento (1545-1563), de que a presença universal era a chave do poder na era da colonização, este tipo de bunker atingiu a maioridade. (Foi preciso esperar pelo desenvolvimento total do sistema capitalista para se produzir a tecnologia necessária ao regresso ao poder pela ausência.) O aparecimento de Igrejas em zonas fronteiriças tanto a Ocidente como a Oriente, a universalização do ritual, a insistência numa certa grandeza arquitectónica e o símbolo ideológico do crucifixo, tudo isso contribuiu para produzir um local credível de normalidade e segurança. Onde quer que uma pessoa se encontrasse, havia sempre uma igreja, a pátria, à sua espera.
Mais recentemente, os arcos góticos transformaram-se em arcos dourados. Os do McDonalds são globais. Sempre que se abre uma fronteira económica, abre-se um McDonalds. Viaje para onde quiser, que o mesmo hamburguer e a mesma coca-cola estão sempre à sua espera. Como a Piazza Bernini em São Pedro, os arcos dourados estendem-se para abraçar os clientes — desde que consumam e depois se vão embora. Dentro do bunker, as fronteiras nacionais pertencem ao passado e sentimo-nos de facto em casa. Para quê viajar? Afinal, seja qual for o lugar onde pensemos ir, já lá estamos.
Existem também bunkers sedentários. Trata-se de um modelo claramente nacionalizado, por isso é o bunker de eleição dos governos. É o modelo mais antigo, que surgiu na alvorada da sociedade complexa e alcançou o auge na sociedade moderna, com conglomerados de bunkers espalhados por todas as áreas urbanas. Em muitos casos, estes bunkers são o último reduto do poder nacional centralizado (a Casa Branca), noutros constituem locais de produção de cúmplices elites culturais (universidades) ou de continuidade fabricada (monumentos). Todos eles são extremamente vulneráveis à agitação electrónica, visto as suas imagens e mitologias serem de mais fácil apropriação.
Em qualquer bunker (juntamente com a respectiva geografia, território e ecologia) é o produtor cultural resistente quem melhor pode causar agitação. Existe suficiente tecnologia de consumo disponível para, pelo menos temporariamente, voltar a inscrever no bunker imagens e linguagem que dêem a conhecer o seu propósito sacrificial, bem como a obscenidade da sua estética utilitária burguesa. O poder nómada lançou o pânico nas ruas com as suas mitologias de subversão política, deterioração económica e infecção biológica, as quais, por sua vez, produzem uma ideologia de fortaleza e, logo, a necessidade de bunkers. Agora é preciso levar o pânico para dentro do bunker, perturbando desse modo a ilusão de segurança e não deixando qualquer hipótese de esconderijo. O incitamento ao pânico em todos os sítios [sites] é a aposta pós-moderna.
*Neste texto, "hacker" refere-se a toda a classe de informáticos sofisticados que frequentemente, embora nem sempre, agem no sentido contrário ao dos interesses da estrutura militar/empresarial. Tal como é aqui usado, o termo inclui crackers, phreakers, hackers proper e cyberpunks.
O Critical Art Ensemble (CAE) é um colectivo de cinco artistas oriundos de variadas áreas incluindo arte electrónica, cinema/vídeo, fotografia, teoria da arte e performance. Formado em 1987, o CAE tem vindo a desenvolver um trabalho que tenta a intersecção entre arte, crítica, tecnologia e activismo político. Este texto é anti-direitos de autor. (Contudo o CAE agradece que lhe seja dado conhecimento quando utilizado.)
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