"Welt Flugplatz/World Airport" – uma proposta possível*

Fernando José Pereira *







x #04
Jan.06




A obra apresentada por Thomas Hirschhorn, intitulada "Welt Flugplatz/World Airport", inscreve-se no conjunto de trabalhos que questionam de forma intrinsecamente artística a contemporaneidade.

O conhecimento de algumas das preocupações prévias por parte do autor revela uma inserção do seu trabalho no campo das preocupações com a espacialidade contemporânea. Ao opor diversas dualidades conceptuais como civil/global; guerra/local; macro/menor o que está a propor é uma reflexão pelas preocupações actuais relativamente a fenómenos como a globalização.

O enunciar destas dualidades conceptuais realçam a importância atribuída por parte deste autor ao político. Apesar disso, é o próprio que nega a sua inclusão em programas de rotulação comercial, afirma Thomas Hirschhorn: "My choice was to refuse to make political art, I make art politically". Ou seja, existe um distanciamento perante posicionamentos dúbios, apesar de lucrativos, que permite uma deliberada escolha de campos muito menos ambíguos. O artista recusa a inserção no seio dos coros que anunciam a transfiguração da catástrofe em produto de consumo. Na Bienal de Veneza, onde esta peça foi exibida, situada a poucas centenas de quilómetros do Kosovo[1], existiam imensos ecos de uma realidade que, se por um lado se encontra presente, pelo outro, ali, já está congelada. Nas palavras de Alison M. Gingeras:

"In the context of the art world's most glamorous circus, this could be the death trap of the timely - a facile echo to world events unfolding less than several hundred kilometers away. Just another moralizing piece resonating with a Biennale full of Kosovo chic?" (Gingeras, 1999)

A obra é constituída por uma instalação numa enorme sala. Ao centro e povoando cerca de setenta por cento do espaço, uma maqueta de um aeroporto. Não uma imagem de um determinado aeroporto identitária de um qualquer lugar, mas ao contrário, uma imagem arquétipa de uma arquitectura sem identidade e configuradora de interesses que ultrapassam largamente as questões da identificação em função da sua necessária adequação a um formato funcional de integração no todo.

A inscrição de identidades é atribuída por outra forma de identificação. A proliferação de logos e sinaléticas globais transformam o lugar numa plêiade de ícones que através da sua omnipresença global se afirmam como referentes identitários num espaço sem identidade.

Evitando a escorregadela para territórios de análise antropológica que lhe esvaziariam em grande parte o discurso, o artista apodera-se desta tipologia do "não lugar", longe da imagética corrente que povoam as exposições, mas de uma forma completamente burlesca.

Na sua instalação, Thomas Hirschhorn colocou em cada um dos quatro cantos da sala, colunas como figurações contemporâneas de pedestais para ícones tridimensionais da globalidade: um par de sapatilhas "adidas"; uma ampliação tridimensional de talheres utilizados nas refeições dos aviões; uma série de objectos com os quais existe uma identificação, a mesma que Augé refere como paradoxo do "não lugar", aquela que o estrangeiro experimenta quando num local estranho se confronta com a existência das referências globais que pululam nos "não lugares".

As referências não são inocentes, elas conduzem o sujeito à filiação passiva nas correntes de pensamento dominantes: o slogan Just do it da Nike não é mais que um óbvio convite ao enfatizar do pragmatismo, o slogan da Apple Think Different dirige a sua atenção para o domínio da pura criatividade. Tudo se materializa depois de realizada a compra… mas não só, Hirschhorn realiza a sua peça como um cenário caótico onde tudo invade tudo, como referência óbvia ao hipersaturado espaço com que compulsivamente temos que conviver. A par das referências comerciais, surgem as referências mediáticas à política do momento, à guerra, banalizadas e esvaziadas de conteúdo, afirmando-se como mais um ícone entre tantos outros. Ou então as referências aos ícones teóricos: Spinoza, Bataille, Deleuze. Na estrutura de Hirschhorn, afinal, todos eles fios condutores dos fluxos do capital.

No centro da sala em cima da maqueta filas de aviões com os logos das respectivas companhias nacionais desfilam numa pista transnacional.

O que parece importante de salientar é a forma como o artista lida com todas as noções políticas e sociais que aqui se encontram. A utilização de uma linguagem que autonomiza a obra dos restantes ícones informativos permite uma leitura que ultrapassa a simples demonstração sociológica, tantas vezes, apanágio de alguma da arte que responde pelo rótulo de arte política.

Toda a parafernália de objectos expostos são construídos ou manipulados pelo artista, utilizando cartão, madeira, plástico, papel, fitas-colas e papel de estanho. Todos os componentes da instalação se encontram interligados por um emaranhado de cabos realizados em papel de estanho, transformando, desta forma, todos em um só, ou de outra forma, todos os componentes fazem parte como canais condutores de fluxos (de capital), espécie de linhas estruturantes de um espaço que é total.

Ao transformar todas as imagens e objectos em frágeis construções, fruto de uma manualidade, aqui, exacerbada, Hirschhorn propõe a fragilidade e a fraqueza (no sentido de que são construídas a partir de materiais cujas principais características residem no seu carácter de efemeridade) das suas peças como lugar de lucidez, na envolvência que é a procura de possibilidades de resistência frente à dominação cultural  hoje exercida pelo "poder".[2]

Voltemos a Alison Gingeras para concluir:

"Despite all propper names that populate Hirschhorn's messy mise-en scene, complete dislocation is impossible amid Capital's codes. Without ascribing a specific geographic identity to this airport or slipping into an archetypal representation of one, Hirschhorn draws the viewer into his global burlesque only to pirate its energy: Undecidable location is mixed with all to legible signs: Hirschhorn uses a connective strategy to produce transparency. Breaking away the opacity of the code, Capital's abstract machine is revealed.” (Gingeras, 1999)

Algumas imagens da instalação

texto escrito no âmbito da tese de Doutoramento no ano de 2000.

 


[1] A Bienal decorreu em tempo coincidente com o final da crise da Jugoslávia. Assim sendo, toda a fase preparatória, incluindo todas as motivações e referentes dos artistas convidados, foram estabelecidos durante o tempo em que decorreu a guerra na província jugoslava.

[2] Colocamos a palavra poder entre aspas para enfatizar o seu carácter abstracto, já não materializável em estruturas tangíveis e nacionais. É a um poder multinacional que nos referimos.

* Fernando José Pereira, co-director da Virose.org., artista plástico.


 [top]