Accidents happens?


Fernando José Pereira*







x #06
Jul.08



1.Accidents happens?

Jodi é uma colaboração existente entre dois artistas holandeses, Joan Weemskerk e Dirk Paesmans. Todo o seu trabalho se baseia no desenvolvimento de projectos que têm como base, e neste caso como produto final, a linguagem binária oferecida pelo computador. Ao contrário de muitos outros artistas com trabalho nesta área, no caso de Jodi, o referente e o próprio resultado final encontram-se confinados à própria máquina.
As suas estratégias de intervenção passam pela utilização de vários suportes para veicular o seu trabalho, basicamente o cd-rom e a internet.
Na rede os projectos apresentados tiram partido da própria linguagem da internet.



Se, por um lado, o acidente está presente em projectos como o "error 404", onde existe um intencional tirar partido da manipulação, deliberadamente errada, da navegação na net, então é necessário acrescentar que o "error 404" é uma das mensagens de erro mais comuns na internet e é apresentado sempre que existem dificuldades de vária ordem na apresentação de uma página. Ou porque o endereço já não existe ou se modificou e foi mal redigido, ou porque está fora de serviço, ou, então, porque outro erro de navegação foi cometido. O que é importante é a possibilidade de tirar partido de anomalias disfuncionais que nasceram como informação e foram transfigurados em projecto artístico: "JODI's aproach is strongly media-conscious, exploiting unexpected potencials of computers and networks, their components and users who cannot be passive spectators but have to interact in order to experience the work." (Catálogo do festival Deaf, 1998)
De forma diferente é utilizada a linguagem binária na construção de outros projectos para a rede. Nestes o que é visível é a programação de sequências combinatórias variadas que se apresentam em contínuos desenvolvimentos. O receptor fica frente a centenas de linhas de programação informática que aparentemente não têm qualquer ligação com o que seria esperado quando da visita a uma página. Para além do efeito deceptivo provocado existe aqui também uma intencionalidade de desprogramar a própria linguagem. A desprogramação, contudo, não é efectuada em torno da proposta que é apresentada, esta é perfeitamente convincente. Aos olhos de um qualquer especialista em programação, mesmo que mediano, é perceptível que se trata de construções "algorítmicas eficientes" (Ruelle, 1991), o que se passa é uma inversão do sentido natural das coisas na aparência da página. Ao contrário da situação "habitual" o que é mostrado é a, normalmente, estrutura oculta da página, isto é, a sua programação. O que fica oculto é o resultado visual pretendido, apenas acessível àqueles que conseguem chegar a níveis de manuseamento da navegação que lhes permita descobrir a componente onde habitualmente se esconde a programação.
A consciência do medium como potencial de trabalho artístico vem provar que também aqui é possível trabalhar de forma interessante com as contingências inerentes à própria linguagem. Nada de novo se entendermos esta como uma evolução de posicionamentos experimentais que já persistem em actividade há longos anos.



A outra faceta deste grupo colaborativo está virada para a produção de cd-rom(s). Neste campo existe, novamente, uma necessidade experimental de trabalhar a partir dos potenciais de acidente, para criar uma nova forma de experienciar a navegação através de distorções e interferências. No início o utilizador experimenta inclusive uma certa irritação devido à existência constante de "noise", ruídos provocados deliberadamente que transformam a imagem numa aparência de mal funcionamento do monitor do computador, deteriorando continuamente as imagens e não possuindo o controlo do "mouse". Como escreve o crítico Saul Albert:
"JODI writes programs designed to create dysfunctional models of computer behavior" (Albert, 1998)
O projecto mais importante em cd-rom produzido até hoje tem o nome de OSS/….. Quando introduzido no computador, o utilizador assiste ao "degradar" gradual do seu desktop. O que o grupo executa é uma série de codificações que se introduzem a diversos níveis nos protocolos de hardware e software para, utilizando a mesma linguagem, os alterar. "Their machinic aesthetics show that on the level of programming and code the accident has always already happened." (catálogo do festival Deaf)
O que parece ser mais interessante no trabalho destes artistas é, antes de mais, a desprogramação efectuada em torno desta noção. Tudo o que vemos aparece apenas como simulacro de acidente. A programação é densa e complexa. Existe, portanto, uma clara intencionalidade na forma e no resultado o que afasta qualquer hipótese de naiveté.
Existem apenas duas formas de experimentação, uma que é baseada na inocência e que se afirma como observadora de desenvolvimentos não previamente estabelecidos, como por exemplo as experiências surrealistas, e outra que contém em si a aprendizagem e consequentemente o controlo da experiência. A verdade relativa ao acidente pode medir-se a partir destas considerações, isto é, grande parte das situações criam-se, de facto, a partir do acidente mas logo são transformadas e “treinadas” para a obtenção de resultados.
A metáfora analógica da onda do mar e da sua sucessão desencontrada no espaço da praia, não se repete no digital. Aqui acidente é sinónimo de disfunção. Talvez o mais correcto seja a sua nomeação como erro.

 

2. Accidents will happen…

As potencialidades de intervenção a partir das contingências potenciadoras do acidente ficam, desta forma, provadas e ilustradas, contudo, outras interrogações posteriores têm que ser levantadas e a mais importante de todas é, sem dúvida, o carácter de universalidade que está a ser alcançado pela linguagem algorítmica.
No fenómeno contemporâneo da sedução — parecem passar por aqui todas as estratégias — a universalidade da linguagem joga um papel muito importante. A pretensa aproximação procurada, através da interactividade, só poderá ser completamente levada a cabo se os receptores agora tornados intervenientes/produtores possuírem as competências necessárias. A linguagem universal dos computadores coloca-se, desta forma, como mediadora necessária e fundamental.
Uma vez mais, encontramo-nos defronte a uma situação em que a ausência de singularidades pode fazer perigar a real capacidade interventiva do trabalho artístico. Singularidades que, enquanto linguagem, podem ser procuradas, na tentativa de contrariar a inserção absoluta do trabalho artístico na mesma lógica standartizadora da chamada cultura visual contemporânea. Estendendo o raciocínio ao social, verificamos a existência de similaridades preocupantes com as estratégias do capitalismo multinacional na defesa do conceito da livre escolha como fundamento básico.[1]
Pela primeira vez na história arte e poder económico utilizam a mesma linguagem. Esta unificação formal vem acentuar a necessidade de uma lucidez absoluta na intervenção que a arte potencia no recurso a estas novas formas de actuar. Depois de toda a negatividade vanguardista não podemos deixar que os procedimentos artísticos se deixem enredar pela lógica do único como solução.
As possibilidades deixadas em aberto pelo acaso e o acidente tentam encontrar um lugar próprio, aquele que lhes garante a singularidade. Contudo, como em outras áreas o maior desafio é o da ultrapassagem das engrenagens que direccionam o trabalho para a cultura do espectáculo.




[1] Sob a capa da livre escolha, cara ao liberalismo, esconde-se, ou melhor, já não o faz, necessariamente, a lógica do pensamento único. Se por um lado tudo é colocado segundo uma perspectiva de aparência democrática, no respeito pelas simetrias, pelo outro, o que verificamos é um fechamento compulsivo, apesar de macio, respeitante às possibilidades apresentadas. As estratégias de expansão mediática tornadas omnipresentes reduzem um amplo leque de escolhas a uma rígida forma de moda, veiculada incessantemente até ao interior das nossas casas e, no limite, até ao nosso próprio interior. Fenómeno novo, a sedução passa, no nosso tempo, pela fetichização de produtos de massas, refere Pierre Bourdieu: "Por primera vez en la história, las seducciones del esnobismo se han vinculado a prácticas y productos típicos del consumo de massas como el vaquero, la camiseta e ciertos refrescos."(Bourdieu, 1998). O que é necessário retirar como ilação é que mais uma vez é de um paradoxo que se trata, o neoliberalismo apresenta-se quase sempre sob esta forma. Por princípio todos temos direito às coisas (massificadas) mas um olhar mais cuidado verifica as diferenças entre umas e outras. Ou seja a diferença não se apresenta como estrutural ou formal, apenas como económica, simbolizada pelo logo ou assinatura. A necessária deslocação do político para o entertainment comercial tudo reduz a uma feição económica. A um posicionamento capaz opõe-se agora uma lógica de "The less you know, the better off you are".
A teoria neoliberal nasce de uma formulação teórica ao nível da matemática pura, que era entendida até há pouco tempo como utopia absoluta. Hoje, acompanhada do desenvolvimento global da sociedade da informação, impõe-se como pretensa única saída possível para os destinos da humanidade.
Quando falámos da universalidade da linguagem era a esta situação que nos queríamos referir. Não é uma linguagem autónoma das artes que está em causa, é antes uma mais que ampla "invasão" de todo o fazer pela mesma linguagem.
A livre escolha de que falam tem a ver exclusivamente com a possibilidade agora aberta pela tecnologia de informação aos intervenientes financeiros para controlarem todas as hipóteses em qualquer parte do mundo.
Quando tudo se rege por uma única linguagem, todas as singularidades externas a essa mesma linguagem tendem a desaparecer. Os universos autónomos de produção cultural encontram-se entre os mais afectados, naturalmente. Como exemplo paradigmático a produção industrial de cinema norte-americano conseguiu, só ela, eclipsar em Portugal toda a restante produção mundial, quedando-se estas por uma percentagem insignificante. Como consequência imediata, nunca em Portugal existiram tantas salas de exibição de cinema, mas ao mesmo tempo nunca tão pouca possibilidade de escolha.


* co-editor do e-zine vector.


 [topo]