Arte e linguagem digital: o contexto da unicidade compulsiva

Fernando José Pereira







b #07
Out.03


Encontramo-nos perante um aparente paradoxo. Nunca foi tão amplo o espectro de possibilidades de intervenção, em termos de meios ao dispor do artista, mas, também, nunca foi tão reduzida a variedade de linguagens existentes. Ela é única e encontra-se ligada às possibilidades numéricas de combinação algorítmica.
Se existem reais diferenças entre as linguagens, chamemos-lhe analógicas, e a linguagem numérica, elas devem-se, sobretudo, ao carácter particular de potencial de manipulação conseguido pelo digital.
Os sinais analógicos podem ser comparados ao quebrar das ondas numa praia, sempre em constante quebrar mas nunca precisamente da mesma forma — é por isso que, copiar sinais analógicos, por exemplo, equivale, sempre, a uma perda de qualidade perante o original — ao contrário com o sinal digital, numérico[1] , tudo se equivale exactamente no mesmo lugar.
Esta capacidade de combinação sem deteriorização explica a sua ampla polivalência. No mundo digital, no limite mais profundo e baixo, tudo se rege por combinações binárias estabelecidas entre "0" e "1". A sua abrangência em todas as direcções é potenciada exactamente pela aparente simplicidade da linguagem.
Stephen Wolfram, um matemático e físico inglês, prova, contudo, que tal como na natureza, que afirma a sua complexidade através de extensas combinações fractais, também no domínio do digital as combinações possíveis não se encontram emparedadas por qualquer intervalo, podendo ser extensíveis até ao infinito [2] .
Desenvolveu uma experiência que baptizou de "cellular automata" em que definiu uma série de regras que determinam como uma célula representada visualmente por um quadrado negro (1) em combinação com um quadrado branco (0) evolui em gerações diferentes no tempo.
Segundo o relato de Steven Holzman, em primeiro lugar definiu as duas células como quadrados, um negro e outro branco. Em seguida listou as diferentes combinações possíveis com as células. Por exemplo para um grupo de três células, existem oito possíveis combinações de quadrados brancos e negros—três quadrados negros; dois negros e um branco; negro-branco-negro; etc. Em seguida organizou uma próxima geração de células combinadas. Assim, para cada combinação de três células, combina uma outra célula segundo uma lógica estabelecida por acumulação; por exemplo: num conjunto de três células negras, a célula do meio da segunda geração será branca. Da mesma forma, se existirem três células brancas, a nova célula terá que ser novamente branca. Por outro lado, uma célula negra seguida de duas brancas ou uma célula branca procedida de duas negras geram uma nova célula negra.
A partir da imposição desta regras, Wolfram construiu sucessivas gerações, até criarem complexas texturas que eventualmente podem ser combinadas e transformadas em formas.




Stephen Wolfram, cellular automata, 1970



O que ficou provado é que a qualidade e a quantidade das combinações são a base de toda a forma no âmbito do digital.
As combinações algorítmicas permitem o abordar do problema da complexidade na informação. Problema importante pois é a partir dele que se desenvolvem todas as possibilidades evolutivas respeitantes à linguagem. Se existem dificuldades de definição para a questão da complexidade, a matemática tenta registar, de forma o mais objectiva possível, a sua prova.
Segundo David Ruelle "um Algoritmo é um modo sistemático de efectuar uma certa tarefa, ou de resolver um certo problema. O problema é de natureza matemática e trata-se de, operando sobre os dados simbólicos finitos, chegar a um certo resultado por um número finito de manipulações explicitadas sem ambiguidades" (Ruelle, 1991). Parece, hoje, claro, que existe uma máquina, o computador, que aparentemente, consegue resolver com eficácia estes problemas combinatórios. Falamos obviamente de uma máquina idealizada, isto é, tendo a consciência de que a máquina é finita, incluindo o programa onde são executadas as combinações, mas que a sua memória é infinita. De outra forma estaríamos a limitar a definição do Algoritmo por deficiências tangíveis externas. O matemático britânico Alan Turing inventou essa máquina a que chamou "máquina de Turing". O objectivo central desta máquina é provar a existência de algoritmos ineficazes e, pelo contrário, algoritmos eficientes. A complexidade algorítmica depende, então, da existência de algoritmos eficientes para tratar determinado problema. Simplesmente, como veremos, não é tarefa simples provar da sua eficácia ou inoperabilidade. O teorema de Godel veio alterar a relação que a matemática tinha com a prova de forma sistemática do carácter de verdadeiro ou falso.



Alan Turing, exemplar on-line da "máquina de turing", 2000



Godel provou que "se se fixam as regras de inferência, e um qualquer número finito de axiomas, haverá asserções exactamente formuladas de que não se pode demonstrar se são verdadeiras ou falsas." (Ruelle, 1991). Ou seja, não se pode nunca provar, aplicando as regras da inferência, que uma asserção é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Aceitando esta propriedade como axioma defrontamo-nos com um carácter novo que nos diz que perante a aceitação desta novas propriedades permanecerão indemonstráveis. Ao teorema de Godel foi dado o nome de teorema da incompletude. Tal com já tínhamos referido anteriormente o que se prova é a inexistência de soluções no interior de um único sistema por ausência de provas irrefutáveis.
Se utilizamos o teorema de Godel é com a consciência das limitações que teremos de impor a uma apropriação que não pretendemos abusiva. Não é possível a sua integração em ambientes simbólicos estranhos senão como metáfora. O especialista Douglas R. Hofstadter fornece um exemplo curioso desta lucidez, mas, também, de uma clareza fundamental ao seu entendimento:
“How can you figure out if you are sane? This is a strange loop indeed. Once you begin to question your own sanity, you can get trapped in a ever-tighter vortex of self-fulfilling prophecies, though the process is by no means inevitable. Everyone knows that the insane interpret the world via their own peculiarly consistent logic; hoe can you tell if your own logic is «peculiar» or not, given that you have only your own logic to judge itself? I don’t see any answer. I am just reminded of Godel’s second Theorem, which implies that the only versions of formal number theory which assert their own consistency are inconsistent.” (Hofstadter, 1979)
Toda a complexidade matemática que transfigura a leitura de uma aparente simplicidade —como provam a existência de estruturas fractais no interior das formas mais simples da natureza— em difícil interpretação, vem dar razão àqueles que provam a inexistência de uma solução única no interior de um sistema simbólico como forma de resolução. Vimos já da sua impossibilidade.
O que nos interessa em detalhe no desenvolvimento de toda esta problemática é, como parece evidente, a possibilidade do retirar de ilações claras para a prática artística utilizadora de sistemas electrónicos de manipulação numérica. Se, por um lado, possuímos a clareza suficiente para abrir as expectativas a novas formas de trabalhar, nunca, por ingenuidade, poderemos olhá-las sem o espírito crítico necessário. Daí que, necessariamente, surjam questões complexas para responder. Neste momento a mais premente coloca-se perante a existência de uma linguagem única expansível a todas as formas de representação.





Exemplos fractais


A diversidade camaleónica das combinações numéricas permite um sem número de aparências para o elemento mínimo (o morfema da linguagem estruturalista), que pode levar ao engano de quem está na posição de receptor. Seja em forma de fotografia, vídeo, cd, internet, etc., todas as resoluções formais estão definidas pela complexidade da combinação proposta. Mas no final tudo são aparências da mesma linguagem digital.
Este problema alarga-se a âmbitos do pensamento que nos interessam de sobremaneira. A relação estabelecida pela filosofia na sua reflexão sobre a arte, ao longo de toda a história, pelo menos desde Platão, baseia-se numa dicotomia alternativa entre uma estética do Ser e uma estética da aparência [3] . Para Platão, como está articulado na República, a imaginação e a visão são olhadas como capacidades inferiores, como produto do nível mais baixo da consciência. Segundo ele, somente a razão poderia ter a capacidade de nos contemplar a verdade enquanto que os produtos da imaginação e da visão apenas nos fazem chegar falsas imitações do real. Coloca, desta forma, a visão e imaginação em patamares inferiores aos das matemáticas e sobretudo da filosofia, estes sim os níveis mais altos da consciência. A sua teoria foi ilustrada com a utilização de um exemplo de uma cama. A postulação que propõe é a seguinte: existem três tipos de camas: uma, o conceito essencial de cama, criado por Deus; em segundo lugar, a cama real, criada por um carpinteiro na tentativa de criar uma realidade; e, finalmente, a cama criada pela representação artística, totalmente externa à sua própria realidade. Fica, portanto, a ideia base de que para este pensador a compreensão da existência humana nunca passaria pela imaginação mas antes pela razão. À imaginação e visão reserva o lugar de verdade, apenas quando entendidas primeiramente como imitações e nunca como original. Esta dicotomia teórica foi-se afirmando continuadamente até aos nossos dias, passando obrigatoriamente pelas análises favoráveis a uma estética de aparência platónica —descendência kantiana [4] —, ou, então, pelo contrário, posicionamentos que se opõem a Platão e que afirmam a obra de arte como mecanismo privilegiado de acesso ao Ser ou a uma possibilidade de verdade; até ao aparecimento da chamada "estética dos meios", reivindicada por muitos daqueles que pensam e manuseiam a tecnologia electrónica.
Segundo esta nova corrente de pensamento, quem exercer uma actividade ligada aos meios electrónicos, mais cedo ou mais tarde, terá que se desligar da posição platónica de aparência (Seel, 1993). Esta negação, contudo, levanta dúvidas quanto à sua razoabilidade. Só estando no interior de um esquema de pensamento herdado, ou presente, é que se potencia a destruição/negação como resolução possível. Enquanto elemento exterior este esquema nunca será entendido como condição fundamental [5].
Existe, portanto, uma outra forma de encarar este problema, introduzindo um conceito novo que escape à dicotomia anterior. Este conceito não tem ligação à essência nem à aparência, porque está antes. Ele é o aparecer.
"O aparecer da obra de arte não quer dizer aqui o emergir de uma verdade superior, mas sim, antes de mais, unicamente, o modo como a obra de arte se apresenta à faculdade da percepção dos seus observadores. A sua essência não está nem no aparecer de uma essência nem no aparecer de uma aparência. Está sim no aparecer para uma percepção que se relaciona de um modo peculiar com ela como aparecente. O Ser da obra de arte é o seu aparecer." (Seel, 1993)
A reclamação da nova formulação de uma teoria estética dos meios pelos intervenientes da arte electrónica peca por ausência de verdade ao esconder um facto que é facilmente comprovável. Toda a estética, desde Hegel, foi sempre uma estética dos meios. O pensamento estético moderno relaciona-se de forma privilegiada com os meios "A arte seria uma manipulação de meios, mas não um uso de meios para atingir um fim exterior a si mesma; a arte seria o que Kant chamava por isso «uma finalidade sem fim». Tal significa que a arte se pensou como precisamente centrada nos meios (desvalorizando os fins)." (Cruz, 1998)
Toda esta argumentação teórica foi levada à prática e dramaticamente incrementada durante o largo período de intensa experimentação, justamente dos meios, oferecida pelos artistas das vanguardas clássicas. Daí que, quando nos referimos a uma estética dos meios para referir a arte electrónica devemos conter nela apenas uma categoria especial de meios, justamente os electrónicos.
E esta divisão é plausível já que existem realmente diferenças fundamentais entre os meios anteriores, chamemos-lhe clássicos, e os novos digitais. Por um lado, enquanto que os primeiros trabalham com meios que no final irão ser o produto da sua matéria sensível, no caso particular do digital (aí reside o seu carácter de excepcionalidade) o meio não coincide necessariamente com o resultado sensível apresentado como final, porque pode ser manipulado e transfigurado em diferentes formas de aparecer. O primeiro apresenta um carácter de acabado (que não tem a ver com a noção modernista de inacabado) que lhe é fornecido pela sua permanência tangível. O segundo, devido à sua dualidade, nunca deverá ser encarado como passível de acabamento a não ser pelo recurso a estruturas externas de fechamento do digital. [6]
Se a imagem tradicional se encontra fixada de forma inamovível ao objecto-imagem onde se torna visível, com a imagem digital tudo se passa de forma diferente, isto é, não existe qualquer ligação entre o software e o hardware onde se encontra exibido. Daí a diferença quanto à noção de acabado entre uma e outra. A capacidade de se deixar manipular até ao infinito, pela imagem digital, dá-lhe uma nova qualidade que se distancia da permanência na imagem tradicional, dos meios de formação serem o resultado sensível; com aquela, o que temos como meio é apenas codificação digital, linguagem binária combinada. A mesma configuração de dados digitais permite diferentes apresentações em diferentes mediuns.
O fenómeno da remediação, largamente utilizado na linguagem hipermediatizada da informação, apresenta-se como a consequência imediata desta situação. O arquivo que falámos apresenta-se como um reservatório de alternativas possíveis de ser trabalhadas e alteradas digitalmente segundo as premissas de intervenção intencionadas.
Ainda segundo Martin Seel, as alterações impostas pela tecnologia digital colocariam em colapso, na visão “fundamentalista” de alguns defensores da estética dos meios, as distinções existentes entre ser e aparência, entre verdade e mentira. Mas tais distinções são determinantes para que se possam entender as relações existentes entre real e virtual e, mais importante, a “realidade vivencial” que produza um acesso a ambas.
Refere este autor:
“Há por isso toda a razão para refutar o critério que adoptou a maior parte dos representantes da escola de Rotzer [7] : só deve poder operar com a estética dos novos meios quem recusar resolutamente a diferença entre Ser e aparência, e com ela toda uma série de distinções de teoria do conhecimento e de teoria da arte tradicionais. Alguns testes, é melhor nem sequer os tentar fazer. Uma estética da aparência total é a resposta errada à estética do Ser.” (Seel, 1993)
Ou seja, a linguagem binária ao produzir, de facto, uma estrutura camaleónica de aparecer, como já vimos condição que se distancia da dicotomia Ser/aparência, mostra a validade da necessária existência de um posicionamento exterior que se coloque de forma crítica perante o manancial totalizador da aparência. Condição essencial para uma análise desapaixonada dos resultados produzidos pela linguagem numérica e, sobretudo, abertura de possibilidades lúcidas de intervenção por parte da arte, num contexto de unicidade compulsiva.

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NOTAS:

[1]Curiosa a utilização literal feita pela língua francesa para designar as operações de passagem da condição analógica à digital : numeriser.
[2]O infinito é, neste caso, apenas teórico, não devido a limitações combinatórias mas sobretudo a limitações de ordem tecnológica, que através do hardware existente colocam limites físicos ao desenvolvimento das combinações numéricas. Vários são os exemplos de problemas tangíveis limitativos da expansão numérica, talvez o mais importante passa pela acomodação física das condições necessárias ao desempenho do processador de informação, encarregando-se a realidade externa de produzir limitações tão prosaicas quanto a inexistência de uma solução para o problema do sobreaquecimento da máquina ao efectuar cálculos demasiado complexos. "…all the examples of the limitations of digital technology are about bits of information: How many bits of information can be processed per second; how many bits of information can be stored; how quickly bits can be accessed from a storage device; how many bits can be moved through a connection to the internet. "(Holzman, 1997)
[3]Refere a este propósito Martin Seel: "Platão acusou estas artes de se limitarem a reproduzir o aparecente em vez de o registarem na sua verdade." (Seel, 1997)
[4]Refere a este propósito Jonathan Crary: "Kant argued that all possible perception could occur only in terms of an original synthetic unification principle, a self-cause, that stood over and above any empirical sense experiences such as vision." (Crary, 1999)
[5]Num ensaio distante das preocupações com a electrónica, antes interessado na análise do conceito de heresia como forma de actuar politico, Santiago Lopez Petit desenvolve uma interessante argumentação onde defende uma ruptura clara com a dicotomia anterior "La estrategia de objectivos/desocupación del orden es una experimentación imaginativa que, habiendo hecho estallar la dualidad no/si, destrucción/construcción, se apoya en el "mundo de las proposiciones" y recorre los multiplos caminos que las proposiciones abren ». (Petit, 1996) As proposições são aqui entendidas como portas abertas não no interior do sistema mas que escapam a ele próprio, orientando a sua intencionalidade para objectivos distanciados. Voltando à escrita de Petit para reafirmar uma sua citação: "Profanar lo sagrado no significa abolirlo. Implica que aún se sigue dependiente de la tran
scendencia. Transgredir el límite no acaba con él. Implica que el limite todavia sigue actuando en relación a la propia transgressión. Ponerse aparte mediante la indiferencia activa, desocupar el orden, disuelve la trascendencia y el limite. » (Petit, 1996)
[6]Aperfeiçoaram-se nos nossos dias os mecanismos de fechamento dos dados digitais, com vista à sua consecução como obra acabada. Entre eles destacamos as possibilidades oferecidas pelo armazenamento em materiais independentes (cd-rom e DVD, principalmente) que podem ser fechados definitivamente só existindo a possibilidade de leitura e nunca de intervenção posterior. Apesar de externa, esta atitude apenas actualiza a experimentação com os meios e o seu correspondente acabamento.
[7]Florian Rotzer editou algumas colectâneas de textos sobre a estética dos meios. O autor refere-se no seu texto a uma publicação em particular: “Digitaler Shein. Aesthetik der neuen Medien” onde se encontram reunidos textos de Peter Weibel, Vilém Flusser, Peter Zec, entre outros.


Bibliografia

CRARY, Jonathan:
1999 Suspensions of Perception – Attention, Spectacle, and Modern Culture, The MIT Press, Massachusetts.

CRUZ, Maria Teresa:
1998 “Media Art ou Mediacracia”, in catálogo do Cyber 98 criação na era digital,
Centro Cultural de Belém, Lisboa.

HOFSTADTER, Douglas R.:
1979 Godel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid, Penguin Books, London, 2000.

HOLTZMAN, Steven:
1997 The aesthetics of cyberspace, Simon&Schuster, New York.

PETIT, Santiago Lopez:
1996 Horrr vacui, la travesía de la Noche del Siglo, Siglo Veintiuno de España
Editores, Madrid.

RUELLE, David:
1991 O acaso e o caos, Relógio d’Água, Lisboa, 1994.

SEEL, Martin:
1993 “Antes da aparência, vem o aparecer. Notas para uma estética dos meios” in
Inter@ctividades, artes, tecnologias, saberes, Lisboa, 1997.

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